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Olha, conto contigo. Com você nessa, a gente voa! . Nossa antologia de contos Os Sete Pecados Capitais está na reta final no Catarse. . Você pode nos ajudar muito, apoiando o financiamento coletivo ou divulgando o projeto, o que você puder fazer será sensacional, muito obrigado! 🙂☀️🙏🏼 . Link na Bio, te convido a dar um pulo lá. . Leia nosso conto na antologia, as imagens aqui em cima falam sobre ele, depois me diz o que achou. . Sinopse da Antologia: . Nesta primeira antologia publicada pelo selo Fraternidade de Escritores @fraternidadedeescritores suas autoras e autores se aventuram pelos famosos Sete Pecados Capitais, cada qual no seu estilo de escrita característico. Eles descortinam o seu pecado, ou pecados escolhidos em 14 contos cheios de emoção, demostrando as fraquezas, ambições e desejos mais profundos dos seus personagens, da forma mais crua e sem filtro da nossa realidade, por vezes não tão humana. Conheça as histórias dessas autoras e autores e descubra quais os seus pecados! . Autoras e Autores: . Amigas e Amigos espalhados pelo Brasil de Alagoas ao Rio Grande do Sul, passando pelo centro oeste e sudeste: . Ana Letícia da Rocha Andrade, A.L.D.R.A @iamanarocha . Crísthophem Nóbrega @autorcrisnobrega . Derek Volker @derekvolker_br . Grazielle Merly @grazielle_merly . Júlio César Bueno @buenoliterario . Karina Camargo @karinacamargoescritora . Lucas Pereira @lucas_pereira_escritor . Priscila Castelano @priscilacastelano_autora . Renan E. M. Guimarães renanemguimaraes.blogspot.com.br . Ricardo Lima @ricardolima.professor . Silvia Meirelles Kaercher @silviamkaercher_escritora . Tadeu Loppara @tadeuloppara.autor . Taty Aguiar @autoratatyaguiar . Bianca Matos @bianca.jadore & Wagner RMS @wagner.rms.escritor . #finaciamentocoletivo #antologias #ossetepecadoscapitais #pecadoscapitais #fraternidadedeescritores #FicçãoCientífica #literaturanacional #WagnerRMS https://www.instagram.com/p/Cl2lf_sMeeC/?igshid=NGJjMDIxMWI=
UM TURBILHÃO DE MUNDOS
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Acredito com firmeza que essa é A LUTA essencial das Criativas e Criativos brasileiros: abrir (e, portanto, diversificar e fortalecer) o Mercado Criativo nacional para Criadores independentes e, ao mesmo tempo, mudar a percepção dos brasileiros a respeito deles mesmos como sendo os novos protagonistas do futuro e do extraordinário.
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São estes montes de Mundos, vividos por nós, que derrubam portas e rangem dentes, ansiando fugir de mim, de nós, e encontrar você.
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Estes Mundos precisam te mostrar seus oceanos ancestrais, suas selvas sombrias, abismos estelares remotos, civilizações exóticas e culturas assombrosas, admiráveis ou assustadoras, interligadas por eventos ocorrendo a distâncias assombrosas daqui, no espaço e no tempo, onde nós e nossos ancestrais/descendentes são os protagonistas.
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Estes mundos e seus personagens são Espíritos Viajantes, iguais a mim e a você, pois para nós a realidade não basta, tem que existir mais além do véu das estrelas, da vida e da eternidade.
© @wagner.rms.escritor & @bianca.jadore
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Repostado de @fraternidadedeescritores . Nesta série de livros de ficção científica nacional, o termo C7i designa tanto uma série de protocolos assinados pelas principais agências de inteligência do mundo no final do século 19, quanto um departamento invisível e multinacional que se reportava, ao menos no início, a estas agências. . Agora, em meados do século 23, operando nas sombras de uma nova civilização humana, C7i é conhecido por seus membros e os poucos que sabem de sua existência como A Agência. . Enquanto a humanidade vive sua era de ouro, com a tecnologia e as evoluções culturais transformando o mundo em uma quase utopia, a Agência cuida para que a extinção humana — que está prestes a ocorrer, por conta do inevitável encontro com forças externas fundamentalmente incompatíveis com nossa existência — seja adiada o máximo possível. . Ao mesmo tempo, C7i busca desesperadamente encontrar um meio de virar este jogo, e para isso a Agência conta com especialistas recrutados entre as mentes mais brilhantes da humanidade, cujas mortes são forjadas para que eles passem a servir em tempo integral como Agentes Diplomatas na Agência. . Estas mulheres e homens tragados para dentro do labirinto que é C7i são a nossa linha de frente na exploração de novas realidades, do espaço inóspito, e de mundos os mais distantes e sombrios, e para enfrentar as forças aterradoras que vêm de lá. . A maioria de nós nunca vai saber que essas pessoas existiram, nem como viveram ou morreram, mas cada um de nós, humanos, devemos absolutamente tudo a eles. Os livros desta série vão narrar algumas de suas histórias e de seus antagonistas. . © @wagner.rms & @bianca.jadore . Conheça no site da Fraternidade de Escritores: https://bit.ly/c7i-serie . Concorda que você, sua gente e sua cultura têm que protagonizar o futuro e o fantástico? Então Curta, Comente, Salve e Compartilhe. __________ #C7i #WagnerRMS #Scifi #FicçãoCientífica #FraternidadedeEscritores https://www.instagram.com/p/CWzlZZXL5qS/?utm_medium=tumblr
Repost de @fraternidadedeescritores . ACOMPANHE A NOSSA SEMANA DE SCI-FI E DISTOPIA!!! DE 13 A 19 DE NOVEMBRO!!! . Com várias postagens interessantes e divulgações dos nossos autores!!! . Ah! E não deixem de acompanhar as nossas duas Lives sobre o tema nos dia 17 e 18 de novembro!!! . NÃO PERCAM!!! . _____ #WagnerRMS #SemanaFC #ficçãocientíficabrasileira #ficçãocientífica #distopia https://www.instagram.com/p/CWau2pmFqdn/?utm_medium=tumblr
#Repost @fraternidadedeescritores … Escrever ficção científica tem que ter um pezinho legal na ciência e ser algo muito divertido de se fazer também!
Mais uma matéria no nosso site da série de três artigos sobre possibilidades científicas de viagens mais rápidas que a luz (MRL) que possam nos levar às estrelas e que sejam úteis se você quer escrever sobre jornadas além do nosso sistema solar.⠀ ⠀ Por Wagner RMS. ⠀ LINK: Aqui
Gostou? Curta, Comente, Salve e Compartilhe! 🙂☀️🙏🏼👍🏼👏🏼👏🏼👏🏼 … #fraternidadedeescritores #ficçãocientífica #escrever #sci-fi #escreverficção #WagnerRMS https://www.instagram.com/p/CPEZE7iDJ7p/?utm_medium=tumblr
Em pleno regime militar brasileiro, Mônica Alencar Deveraux, jovem inteligente e doce, é presa injustamente e, antes de morrer, é transformada pelo Povo Antigo (sonhos e pesadelos que ainda vivem em florestas e vales esquecidos, e mesmo aqui, nos escuros interstícios da cidade) em uma poderosa Criatura da Escuridão. Hoje, agente federal e uma arma estratégica no jogo dos poderes políticos, Mônica descobre a Amizade e o Amor, mas vê a si mesma como um monstro, apesar desta poderosa brasileira ser tão bela e sedutora. Ela deve se permitir Amar? __________ @fraternidadedeescritores #scifibrasil #ficçãocientífica #blackfriday #WagnerRMS https://www.instagram.com/p/CIFBukBjQNJ/?igshid=1rhot2c21xy94
No terceiro livro da série space opera C7i: a Terra é atingida por naves bombas, lançadas por separatistas da colônia lunar, e, enquanto a Agência enfrenta mais uma crise, Milena e Borges, por meio do misterioso No-one, descobrem um horrendo segredo que mostra até onde a Agência pode chegar. __________ @fraternidadedeescritores #scifibrasil #ficçãocientífica #blackfriday #WagnerRMS https://www.instagram.com/p/CIFBi46jg7d/?igshid=16aw6936scpib
No segundo livro da série space opera C7i: iniciamos nossa jornada pelos meandros da Agência, e começamos a ver que a organização mais poderosa do planeta Terra é tão capaz de cometer erros quanto seus idealizadores humanos, mesmo que eles nem sejam mais tão humanos assim. Enquanto isso, Borges e Milena iniciam a construção de seus laços de amizade e desesperança, enfrentando a morte no mais solitário dos mundos, o espaço. __________ @fraternidadedeescritores #scifibrasil #ficçãocientífica #blackfriday #WagnerRMS https://www.instagram.com/p/CIFBaLTjzJM/?igshid=1ybe4cmwdqfu
No primeiro livro da série space opera C7i: o começo de um motim, onde humanos se rebelam contra uma mente não humana e quase onisciente, e o encontro com o nosso pior inimigo: um jovem com a mais pura e sincera fé. __________ @fraternidadedeescritores #scifibrasil #fraternidadeescritores #ficçãocientífica #blackfriday #WagnerRMS https://www.instagram.com/p/CIFA-J_jT5M/?igshid=q6me93yh0j9c
Assista agora, no Amazon @primevideobr a série Nomade 7 do Diretor @flaviolangoni , da Produtora @livia_pinaud_audiovisual e do Roteirista Wagner RMS. . Neste Sci-fi BR premiado Internacionalmente, o protagonista Daniel morre de forma trágica, mas misteriosamente volta à vida na manhã seguinte com a oportunidade de dar um novo significado a sua vida, mas também assombrado por vozes que irrompem na sua cabeça. Estaria Daniel enlouquecendo? __________ #Nomade7 #ficçãocientífica #fraternidadeescritores #WagnerRMS https://www.instagram.com/p/CCrzQ4OjEnK/?igshid=1vapr7dm66gq
Originalmente feito para um concurso de contos da Amazon, "É A Vida" foi revisto e ampliado há pouco tempo, retornando à proposta inicial. Para caber no limite de número de palavras do concurso, parte das referências originais foi cortada. __________ #Conto #FicçãoCientífica #BuracoNegro #WagnerRMS https://www.instagram.com/p/CB07RofjcRy/?igshid=1ddswawc3stns
Quem me conhece ao vivo sabe que sou a encarnação da timidez, aquele tipo de pessoa que, em eventos sociais, não sabe o que fazer com as próprias mãos. Mas se é pra apoiar e participar de um projeto tão bacana e que divulga tantas criativas e criativos brasileiros e suas ideias e trabalhos fascinantes, então no próximo dia 11/06/2020, às 19 horas, eu vou conversar com a gentilíssima Autora Bárbara Gouvêa no Papo de Escritor sobre ficção científica na literatura e no audiovisual. Além de mim, outras lives que eu acho incríveis estão acontecendo no Instagram da Bárbara e vai ser muito show se você puder estar lá com a gente, curtindo, divulgado, participando, perguntando e, quando for a minha vez, me ajudando a vencer minha timidez, obrigadoooo. 😉🥰🙏🏼
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Hoje nossa série NOMADE 7 nos trouxe mais alegrias: entramos para o catalogo da Amazon Prime 😍🎬🎥.
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“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto… E conversamos toda a noite, enquanto A Via Láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?” E eu vos direi: “Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e entender estrelas” (Olavo Bilac)
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Especial Fantasia @amazon Livro 1. _____ #ficçãocientífica #Scifi #WagnerRMS https://www.instagram.com/p/B90kalBDIPP/?igshid=sjbuj8octhk2
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As Mulheres que me dão o privilégio de fazer parte de suas histórias incríveis corroboram com esta Verdade!
Protagonistas, leitoras e autoras. Temos muito orgulho delas!
Mônica: http://bit.ly/monicadeveraux
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E lá vamos nós, ♥️ Bianca Matos ♥️ e eu. Terceira Bienal do Livro Rio como autor. 😍🙏🏼♥️📚🚀🎬🇧🇷❗
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E divagar sobre quem, ou o quê, me observa de volta. Esses pensamentos viram ideias, que trasmogrificam-se em conceitos, contos e livros, roteiros e séries.
Vem conhecer minhas viagens: https://wagnerrms.com/
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Concatenar uma série tão longa e detalhada, cuja ideia é construir uma Space Opera com dinâmica de ação, extrapolando o mínimo possível ciência e tecnologia do Sci-Fi Hard é tremendo desafio. Mas não basta ir ao espaço e se aventurar em fugas e escaramuças, tem que mergulhar no Novum e no que se aproxima o mais possível do Alienigena, desaguando naquela extraordinária sensação de estar de fato diante de cultura, artefatos e constructos mentais feitos por um alguém sim, mas cuja ancestralidade e a mente absolutamente nada tem a ver com o planeta Terra.
Conheça: https://wagnerrms.com/c7i
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ATENÇÃO: Isto é um fanfiction, escrito para servir como crítica de cinema, e não como roteiro comercial, ou seja, sem fins lucrativos. Sugiro que se veja primeiro o filme, e depois se leia o fanfiction, ou melhor, o fansrev (acrônimo de Fan Screenplay Review, ou Revisão de Roteiro Por Um Fã) abaixo. _ Wagner RMS.
Leia: Parte 1.
A missão International Space Committee - ISC - Aurora é um esforço internacional de exploração do Sistema Solar, e é composta por (a) veículo (sonda Aurora) que deveria executar sondagens e pesquisas por toda a área próxima a Marte, incluindo asteróides cruzadores da órbita do planeta vermelho; (b) três equipes de pouso, que deveriam se revesar por cerca de 24 meses, nas construção de bases fixas na superfície de Marte, em suas luas, e, se possível, em um dos asteróides visados, e explorar todos estes alvos. A transcrição de gravação abaixo, editada para sua conveniência, seria a versão final do que aconteceu com a equipe de pouso Aurora 2, em seus últimos dias na superfície de Marte antes de serem recolhidos pela sonda Aurora, conforme descrito por Vicente Campos, Oficial Comandante e Engenheiro de Sistemas da missão. A divulgação total ou parcial deste conteúdo é passível de prisão, multa e confisco de bens.
GRAVAÇÃO DE RAIO ZULU 7524 CONECTADO, SEGUNDA PARTE DA TRANSMISSÃO.
Brunel olhou em volta, como se estivesse com raiva, e agarrou um extintor de incêndios, mandou que eu o seguisse, e enquanto corria para a eclusa de ar, perguntou se eu sabia como impedir a comporta de abrir. Eu disse que tentaria. Mas era tarde, enquanto corríamos, como Brunel não deu ordem direta, o lerdo do Harrington deve ter levado um momento pra agir e bloquear a porta, então havia alguém já dentro da câmara de compressão quando chegamos a antessala. A luz verde, indicando que quem estava lá fora podia entrar, acendeu e quase no mesmo instante Brunel socou o botão vermelho de lacre daquela comporta. As luzes da câmara se apagaram, acenderam as luzes fracas e vermelhas de emergência, e a comporta travou de ambos os lados. Todos estavam ali agora, eu lembro, menos Harrington, que deve ter ficado respondendo à sonda Aurora. Prendemos a respiração quando Brunel espiou pela pequena janela da câmara de compressão. Ele disse “estão lá, acho que estão agachados e abraçados lá”, premiu o botão do interfone, e disse “quem são vocês?”, mantendo o botão pressionado, para que ninguém precisasse fazer isso do outro lado.
(Silêncio. Vicente aspira ar, com força)
Demorou para que respondessem. E a voz de Marko apenas disse, com calma e frieza, “abram a comporta”. Brunel respondeu que não abriria até que eles se identificassem e dissessem porque estavam ali. Harrington entrou em contato pelo interfone interno da base, dizendo que podia ver a câmara de compressão pelo vídeo interno, e que só havia um visitante dentro da câmara! E o que estava lá dentro, de fato sozinho, pulou em nossa direção, e por uma fração de segundo foi como se alguém agarrasse um cadáver em decomposição e empurrasse a cara dele contra a janela de comporta interna, a pouca luz de emergência vermelha o fez parecer banhado em sangue, foi só um segundo, mas foi horrendo.
Todos corriam, arrancavam os trajes dos suportes, vestindo eles com a pressa do desespero, no meio do vendaval da descompressão. Harrington apareceu na porta da antessala da eclusa de ar, para pegar e vestir seu traje pressurizado, seu rosto estava torcido numa careta de medo, ele ameaçou entrar, as luzes falharam, ouvi um som de rasgar, e eu só vi as pernas do sujeito se batendo, enquanto alguma coisa o arrastava de volta, em direção a um corredor escuro, onde as luzes se apagaram de vez e as luzes de emergência não se acendiam. Irwing gritava, em pânico, enquanto tentava fechar o capacete atrapalhadamente, e ele não teria conseguido se a Kim não tivesse fechado por ele. Ela já estava no traje. Lane também. Brunel gritou para usarmos a passagem pressurizada para a cúpula hidropônica, ele mesmo parou na outra porta que dava acesso à passagem e ficou pondo seu pessoal para passar por ali. As luzes se apagaram, e voltaram a acender, e algo da altura de Dalby estava ali dentro, com a gente, e estava abrindo a comporta que nós lacramos, pressionando de novo o mesmo botão vermelho que Brunel havia premido. A luz voltou a piscar e a coisa veio pra cima da gente! Brunel atirou o extintor que ele carregava contra a coisa. Lembro que corri atrás de Lane porque ela me puxou pela mão, com Irwin atrás de mim. Mas Irwin foi agarrado, gritava pelo rádio dos trajes que tinham agarrado ele, enquanto Kim gritava que estava vendo, algo tava mesmo agarrado em Irwin. Brunel gritou alguma coisa que não lembro. Enquanto ela falava, eu ouvia batidas fortes mas surdas, seguidas, tum, tum, tum! Kim e Brunel espancavam algo com alguma coisa. Me virei, vi por sobre o ombro Irwin levantando e correndo em minha direção com Kim, segurando um outro extintor, e Brunel também armado com algo, vindo por último. Uma forma escura se debatia no chão atrás deles! Na luz vermelha, piscando e vacilando intensamente, aquilo parecia um demônio se debatendo no inferno, mas no último instante, para me apavorar mais ainda, eu vi perfeitamente que era a silhueta de uma pessoa.
As luzes da passagem, alimentadas pelas baterias da Cúpula Hidropônica, não se apagaram. Enquanto corríamos através dela, vimos através das seções transparentes da passagem pressurizada que havia um dos nossos Rover estatelado contra uma das laterais da Base Tantalus. As luzes de toda a base agora decaiam, mergulhando aquela parte do nosso mundo na escuridão de vez.
Foi aí que eu notei que apenas Irwin corria atrás de mim. Parei o cara, que tremia e berrava, bem ali no meio da passagem pressurizada. Gritei com ele, perguntando onde estava Kim e Brunel. Irwin, em total desespero, fora de si, berrava que as coisas agarraram Kim e Brunel, e que ele, Irwin, fugiu, correu, fechou a porta estanque do corredor pressurizado atrás de si, sem olhar pra trás! Eu tive vontade de socar o cara ali mesmo, mas lá atrás, no início do corredor, na escuridão que engoliu o Comandante e Kim, eu ouvi a porta estaque bater. Empurrei Irwin na minha frente, e corri atrás dele, gritei por Lane, que respondeu dizendo que estava na outra ponta, na Cúpula, chamando por nós. Eu disse a ela que pegasse ferramentas, qualquer coisa pra eu conseguir lacrar as comportas de lá. Empurrando Irwin na frente, entrei na Cúpula com Lane me empurrando uma caixa de ferramentas. Peguei um alicate, arranquei o teclado externo enquanto alguma coisa, uma das coisas, vinha correndo pela passagem pressurizada, nas minhas costas. Entrei e bati a comporta, lacrando ela e acionando o mecanismo de lacre, quando ouvi o monstro lá fora bater várias vezes contra a comporta! Foi por um triz.
“Conseguimos…” eu disse, já sem fôlego por causa do meu CO2 de novo. A Cúpula Hidropônica estava escura, com luzes intensas, mas direcionais, vindas de baixo para cima dos tanques onde fazíamos as plantas terrestres crescerem na água retirada das fossas marcianas. Naquela penumbra eu pude ouvir Irwin gemendo, Lane respirando profundamente, minha própria respiração intensa, e, de repente, a voz de Dalby dizendo “parem com a brincadeira”.
(Silêncio. A seguir uma quase inaudível risada rouca e nervosa, muito provavelmente do próprio Vicente)
Só tinha um daqueles troços me seguindo pelo duto pressurizado, foi aí que lembrei. A coisa que foi Dalby, capaz de funcionar na atmosfera rarefeita de Marte, deu a volta por fora, e nos alcançou na hidropônica. A coisa, eu me lembro agora, em retrospecto, não tinha mais o capacete da Dalby, claro, mas ainda usava a touca com o fino microfone grudado nela, e com os auriculares, que permitiam ao monstro falar e nos ouvir pelo rádio do traje, que evidentemente ainda funcionava. Por entre rasgos na touca em farrapos, era possível se ver alguns cachos dos cabelos da nossa Dalby, empapados de sangue e algum tipo de gordura. Cabelos que um dia foram dourados feito trigo.
Quando escutamos a voz de Dalby o terror foi absoluto, eu achei que fosse vomitar quando ouvi aquela coisa falando. A Lane, que havia se agachado, cansada, ficou de pé num pulo, olhos arregalados, trêmula. Irwin começou a choramigar, enroscando-se no chão contra a parede. Eu coloquei mais ar pra dentro e prendi a respiração. Funcionou, fiquei mais lúcido na hora! Fiquei agachado mas pronto para o que viesse, acho.
Nas sombras, logo depois das bandejas iluminadas de cultivo, a criatura aparecia e desaparecia, mergulhando e saindo das trevas. Mal dava para ver seu rosto assustador, mas dava para perceber que a coisa tinha algo metálico, afiado e muito perigoso em uma das mãos descarnadas dela. E nós estávamos encurralados!
Ativa, Lane tentava arrancar qualquer coisa das paredes! Os extintores não estavam ali, retirados pra vistoria, não havia nada ali! Irwin implorava, resmungando "por favor" sem parar.
A coisa veio!
Algumas das bandejas das plantas um pouco mais distantes explodiram, quando aquilo saltou de lá de trás, vindo direto em cima de nós! Ou melhor, de mim, pois fui o primeiro alvo.
Lembrei da caixa de ferramentas, e foi ela que me salvou. A coisa enfincou com tanta força o pedaço de metal que ela usava como faca na caixa, que chegou a furar o plástico industrial e ficou presa lá. Se fosse eu, teria atravessado o traje e meu peito, podendo até partir costelas facilmente.
Usei toda a minha força para levantar e empurrar o troço contra o fundo de novo, para cima das plantas, nem sei que eu queria, só queria, eu acho, bater com ela em alguma coisa. Dei um puxão lateral na caixa de ferramentas, onde a faca ainda estava travada, e fiquei espantado quando consegui arrancar a arma daquela monstro com pele áspera e como que queimada, e com uma versão ensandecida dos olhos claros de Dalby faiscando, só que de um tom opaco, doentio, furioso! Ela reagiu, e com um movimento muito rápido usando as pernas e (eu juro que vi) um dos pés que estava descalço para agarrar onde conseguiu, feito um primata, e se empurrar de volta para cima de mim com tanta força que eu desabei e perdi a caixa, que, um segundo depois estava nas mãos da criatura, descendo violentamente sobre o meu capacete. Ela teria me arrebentado se não fosse Lane. A luz da sala vacilou e as lâmpadas das bandejas hidropônicas pareceram se espalhar para todo lado, com seus fachos claros girando caóticos, e, o mais importante e que aconteceu ao mesmo tempo, algo atingiu o monstro com tanta força que uma parte do crânio do monstro esmigalhou e voou longe, junto com um sangue vermelho-amarelado, purulento e muito escuro, que se derramou pela sala, atingindo Lane, que havia usado uma prateleira da hidropônica para arrebentar a cabeça do monstro, e encharcando Irwin que gritou no rádio tão alto que eu quis que ele tivesse morrido, o filho da puta.
(Silêncio. Um momento depois Vicente repete:)
Filho da puta.
Eu tentava ficar de pé e gritava “como ela entrou? como ela entrou? fecha! fecha!”. E enquanto eu gritava, consegui correr até a comporta da sala de compressão da cúpula hidropônica, ali ao lado, e percebi que por uma tremenda sorte o alicate retirado da caixa de ferramentas ainda estava comigo. Entrei na câmara de compressão, descomprimi por um tempo que pareceu absurdamente longo, e abri a escotilha externa. Se outra coisa daquelas estivesse lá fora esperando, teria me atacado, pois fiz o que fiz num impulso só. Mas não havia monstro nenhum ali fora, e eu destruí o teclado externo da câmara, onde o código de emergência para entrada poderia ser acionado, e voltei a fechar a comporta e lacrar ela. Foi quando um vulto surgiu correndo na tempestade de areia que começava a bater pesado do lado de fora. Imediatamente o vulto começou a esmurrar da comporta externa.
Voltei à sala onde a briga com o que foi Dalby aconteceu, e encontrei Irwin e Lane examinando a criatura morta. Era Dalby mesmo, sem dúvida.
(Silêncio)
O que restou dela.
CONTINUA… Parte 3.
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ATENÇÃO: Isto é um fanfiction, escrito para servir como crítica de cinema, e não como roteiro comercial, ou seja, sem fins lucrativos. Sugiro que se veja primeiro o filme, e depois se leia o fanfiction, ou melhor, o fansrev (acrônimo de Fan Screenplay Review, ou Revisão de Roteiro Por Um Fã) abaixo. _ Wagner RMS.
A missão International Space Committee - ISC - Aurora é um esforço internacional de exploração do Sistema Solar, e é composta por (a) veículo (sonda Aurora) que deveria executar sondagens e pesquisas por toda a área próxima a Marte, incluindo asteróides cruzadores da órbita do planeta vermelho; (b) três equipes de pouso, que deveriam se revesar por cerca de 24 meses, na construção de bases fixas na superfície de Marte, em suas luas e, se possível, em um dos asteróides visados, e explorar todos estes alvos. A transcrição de gravação abaixo, editada para sua conveniência, seria a versão final do que aconteceu com a equipe de pouso Aurora 2, em seus últimos dias na superfície de Marte antes de serem recolhidos pela sonda Aurora, conforme descrito por Vicente Campos, Oficial Comandante e Engenheiro de Sistemas da missão. A divulgação total ou parcial deste conteúdo é passível de prisão, multa e confisco de bens.
GRAVAÇÃO DE RAIO ZULU 7524 CONECTADO, INÍCIO DA TRANSMISSÃO.
Eu tenho cerca de quinze a trinta minutos.
(Um pouco de estática enquanto a antena se alinhava)
Vou resumir tudo. E torcer pro Aurora Lander não reentrar antes do fim.
(Silêncio)
Na verdade, eu não sei ao certo... Não sei ao certo por onde começo.
(Silêncio)
Sim, ah, merda, óbvio, ok... Vou morrer aqui, daí, desculpem, mas não dá pra ser muito delicado.
Então… Na verdade, a situação começou bem antes de nós, quando a primeira equipe de solo construiu e habitou a Base Tantalus. Imagino que já tenham entendido do que eu estou falando, Marko Young, o biólogo que desapareceu. Nenhum corpo, nenhum vestígio, os demônios de areia, essas tempestades que riscam Tantalus, elas enterraram os restos do azarado, depois de algum defeito no traje. Quem mandou andar sozinho? Mas o fato de o equipamento de perfuração e análise do cara ter ficado por lá, com o painel solar aberto, e emitindo de vez em quando dados e pings de localização, criou um clima meio sombrio, meio idiota entre nós, e surgiu o papo furado sobre ele ter encontrado algo… Bem, agora eu sei que é bem provável mesmo que o cara tenha encontrado algo. Lembro dele da Terra, nos treinamentos, texano, intragável, mas muito inteligente. Deve ter ido atrás de algo, sozinho. Vai ver para ficar somente para ele a glória da descoberta.
Encontrou e foi encontrado. O que o encontrou teve quase oito meses para, a bem da verdade, digerir e entender o cara. Digerir, espero, no sentido de metáfora.
Eu não posso me prolongar, então lá vai. Existe vida em Marte, e de algum modo ela é especializada em nós, ou é especializada em qualquer outra forma de vida, em estudar elas e sobreviver através delas, ficando especializada em nós por causa do Marko.
Vocês vão entender. Recebemos liberação para estudar a área onde Marko desapareceu, pela primeira vez em meses as tempestades ciclônicas deram um tempo, e alguém no Controle da Missão ficou curioso com a boataria em torno dos demônios de areia, e estava longe deles o suficiente para mandar os buchas de canhão aqui para averiguar.
Eu, Lane e Dalby fomos destacados por Brunel para resgatar o equipamento de Marko. Chegamos lá no Rover dois. Dalby ficou nele, enquanto eu e Lane… Deus, sinto falta de Lane… Eu e Lane subimos as rochas aplainadas e fomos triangulando, por triangulação unitária mesmo, já que mais uma vez os satélites estavam fora do ar, e, por sorte, depois de cerca de uma hora, encontramos os equipamentos do pobre astronauta perdido, estranhamente arrumados numa depressão, havendo lá, inclusive, um tablet que tinha sido meticulosamente desmontado. A noite estava caindo, e foi o pisca-pisca da luz da antena da sonda perfuratriz, na escuridão da fenda, o que nos atraiu e nos levou direto pra lá. O cabo de força serpenteava, para fora da depressão, e o painel solar estava ligado a ele, aberto e fixo no chão com estacas, os redemoinhos de areia só faziam limpar os painéis, sem arrancar, e era por isso que eles funcionaram sem parar. Comentei que aquilo não parecia o trabalho de um biólogo.
(Silêncio)
Estávamos há cerca de meia milha do Rover.
“Alguém está tentando entrar na câmara de compressão”, eu lembro até do tremor na voz dela. A base avisou que ninguém tinha nos seguido. Lane e eu corremos de volta. Dalby começou a entrar em pânico. Eu já estava gritando algo como “calma, Dalby, use o painel, trave a comporta!”, e ela dizendo “Eu travei! Quem é?! É algum tipo de pegadinha, Campos? Parem com isso! Estão me assustando! Eu travei, eu travei a comporta externa, mas quem tá aqui sabe o código de emergência!”, e ela começou a chorar e a gritar pedindo, depois implorando que parássemos com a brincadeira! Houve um barulho de descompressão, e nós, Lane e eu, tentamos correr mais rápido. Eu descobri no voo pra cá pra Marte como sou ruim para oxigenar artificialmente, daí então, correndo e berrando dentro de um traje pressurizado, meu CO2 atingiu o limite rapidamente, Lane continuou, disposta e ágil como sempre, mas eu tive que parar pra recuperar a porra do fôlego. Dalby já não gritava mais. Lane chegou lá primeiro, ela sempre foi a mais esforçada e rápida de nós todos.
(Silêncio)
Nunca mais encontramos Dalby, a nossa Dalby de doces olhos azuis.
(Silêncio. Vicente tosse)
Quanto consegui entrar no Rover, só Lane estava lá, parada.
Então ela apontou para o que ela tava olhando, e lembro que meu estômago revirou. Era o capacete de Dalby.
(Silêncio um pouco mais longo)
Procuramos por várias horas, aquela noite, até as baterias do Rover ficarem perigosamente baixas. Ninguém poderia ter certeza de que outra tempestade de areia não desabaria por ali. Mesmo assim pedimos permissão à Base Tantalus para ficarmos por lá. Estávamos em choque, ainda querendo que Dalby voltasse, de algum modo. Brunel fez bem em nos mandar de volta à base, estávamos nos pondo em perigo, e logo os ciclones de areia começaram a dançar por lá, na verdade em toda a região, seria um risco estúpido dormir no Rover.
A transmissão do Comandante para nós foi mais ou menos assim “quero que voltem antes de terem que esperar pelo sol para recarregar as baterias. Desculpa, gente, mas se não encontraram Dalby até agora, minha prioridade passa a ser a segurança de vocês dois” e mais ou menos aqui, nesta altura, houve interferência e uma voz diferente entrou na transmissão, dizendo algo tipo “tragam Aurora de volta”.
Foi apenas um instante, uma frase, mas gelou o sangue de todo mundo.
Lane brigou comigo, não aceitando, racionalizando aquilo, mas Brunel escutou, e tenho a impressão, pelo silêncio relutante dele, que o Comandante achou a mesma coisa que eu. Era a voz rouca e desleixada do texano que treinou com a gente na Terra. Brunel, depois de um tempo, achou que fosse vazamento da memória do diário de missão gravado. O sotaque interiorano e norte americano quase desaparecido, mas que merda, tenho certeza que era o Marko.
Nos reunimos com Brunel e os outros, na sala comum da Base Tantalus, pouco depois de nós chegarmos lá. Irwin tentou seus psicologismos em nós, Lane e eu. Eu estava muito nervoso, mas louco ainda não. Agora não sei, mas ali, naquele instante, eu tinha certeza que Irwin poderia ir se foder.
Contamos tudo de novo pro Brunel, pois viemos o caminho todo discutindo sobre o que aconteceu, e o Comandante orientou Harrington a solicitar instruções ao Controle da Missão, ou seja, vocês aí na Terra. Mal Harrington se sentou na console de comunicação, ele se virou para o sistema ao lado, aquela outra grande tela com as imagens das câmeras externas, chamando a gente para ver, tinha alguém lá fora, entre as rajadas de areia dava para ver alguém, o contorno muito confuso de um traje pressurizado. Um de nós, não lembro direito, talvez a Kim, que chegou por último à reunião, perguntou se não poderia ser a Dalby. Eu, que costumo ficar na minha, mandei calar a boca, Dalby tava morta. Kim Aldrich, mulher de pavio super curto, tava me dizendo para mandar minha mãe calar a boca, ou algo assim, quando Irwin, que havia chegado perto de Harrington e da tela das câmeras, deu um pulo para trás.
Outra sombra apareceu! Agora havia duas silhuetas lá fora.
Aquilo era insano pra gente! O pessoal da sonda Aurora ainda estava longe. Dalby tava sem oxigênio havia horas, e Marko havia meses. Mas não havia ninguém mais em Marte que pudesse estar lá fora, naquele momento! Ficamos como que paralisados, vendo as sombras bruxuleando, distorcidas pela areia, não nos mexemos mesmo quando essas sombras começaram a vir na nossa direção.
Brunel quebrou o silêncio, mandando Harrington enviar a mensagem para o Controle da Missão na Terra, e que ele entrasse em contato com a sonda Aurora. Neste instante percebi pelo canto de olho que a sonda Aurora estava manobrando para entrar em órbita. Foi a nossa última transmissão para vocês na Terra, antes desta aqui, vocês devem ter recebido uns oito minutos depois que Harrington enviou. Os visitantes levaram uns cinco minutos para chegar à nossa eclusa de ar. Um momento antes deles chegarem, quando Kim percebeu a trajetória e resmungou que eles estavam vindo direto pras eclusas de ar, eu agarrei o Comandante e disse que o que tava lá fora sabia os códigos de emergência, que mesmo que nós lacrássemos a comporta, eles iam conseguir entrar!
CONTINUA… Parte 2.
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Desta vez o texto pediu ao autor para ser um pouco mais profundo, mais amplo, e levou mais tempo a ser escrito. De qualquer forma chegamos ao fim desta jornada juntos, e descobrimos, enfim, que Milton é gente, que sonha, sofre, erra, se perde e se acha, mas que, se deseja algo de bom ao mundo, aos outros, então não pode ser louco, afinal. Quero, também, te agradecer, profunda e sinceramente. Você que veio até aqui comigo, me desculpe onde não atingi todas as suas expectativas, e obrigado pelos momentos em que eu pude ter o privilégio de te divertir e te comover de algum modo. Muito, muito obrigado. Agora, que se ergam as cortinas de sua poderosa imaginação, e adiante na leitura, que o alimento para sua curiosidade está logo aqui embaixo!
Leia a Parte 1 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Leia a Parte 3 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Hic Sunt Dracones
Desta vez era o fim da tarde, e Milton Steinberg estava novamente em frente ao Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, na Urca, pensando em como entrar. Primeiro ponderou que, feito nos filmes, era só se deixar capturar.
— Meu nome, — Disse Steinberg ao porteiro, falando pausadamente, gravemente, para ser entendido de primeira — é Steinberg, Milton Steinberg.
O porteiro, depois de olhar para o sujeito na sua frente por um longo momento, enfim disse:
— E?…
Milton voltou para a rua e ficou olhando o prédio, se sentindo amargurado, mas também um idiota. O porteiro não estava avisado para capturar qualquer Steinberg que aparecesse, aquilo não era roteiro previsível hollywoodiano… Ou era? Então Milton voltou e tentou dizer, na portaria, que precisava falar com o Doutor Rubens Castilho Lewroy. Obviamente o porteiro informou que Castilho não estava, o físico havia pedido umas férias, ele achava, e que se quisesse o visitante poderia deixar recado para quando o Doutor voltasse, era só dizer.
Novamente Milton estava na rua estreita em frente ao prédio do CBPF, ponderando. O que pretendia fazer se fosse capturado e levado aos seus algozes? Como parar tudo aquilo? Será que, ao entrar, descobriria que não ocorreu explosão alguma e que, de fato, ele tinha ficado muito doente, completamente louco? Caminhou, tenso, pela rua, e encontrou um pequeno bar. Bebendo uma cerveja, tentou chegar às respostas, talvez a uma linha de ação.
Nada.
No entanto, em certa altura de suas elocubrações, imaginou como uma explosão naquele prédio federal não foi noticiada?
Neste instante seu celular voltou a tocar. Atrapalhadamente, enquanto se lembrava mais uma vez de filmes que viu, e tentava arrancar a bateria do celular para não ser localizado, se deu conta de que havia tentado ser capturado, e, olhando para o smartphone por um segundo, sentindo-se novamente idiota, atendeu.
— Steinberg? — Disse a voz no aparelho.
— Rubens?
— Eu. Conseguiu se mandar?
— Nós?… Cara, eu te vi mesmo hoje?
— Viu. Você conseguiu fugir também?
Após um longo e comovido suspiro, afinal a ligação de Lewroy indicava que provavelmente ele, Milton, não estava louco, Steinberg foi pondo a mão perto da boca e baixando o tom de voz, para tentar não ser ouvido por mais ninguém, além de Castilho, e por fim foi dizendo ao celular:
— Sim. Mas não suporto mais isso. Tô aqui no seu trabalho, quero encarar. Quero entrar, destruir a tal máquina, ou morrer tentando. Essa sensação que trago comigo está me enlouquecendo, cara! Tô fazendo coisas que não faria, agredindo e sendo agredido! Tô com medo de estar doido…
— Não está.
— Graças a Deus! Mas então eu tenho que entrar mais ainda, tenho que mudar tudo, não quero ser preso, não adoro minha vida, mas não quero que ela fique pior!
— Calma… Entendo…
Silêncio. Após esperar um tempo para que Rubens falasse mais, Steinberg disse, em tom suplicante:
— A experiência… Envolvia o que chamamos de correlação inversa de causa e efeito entre partículas. Usando o entrelaçamento quântico, pretendíamos provar inequivocamente que partículas espalhadas pelo espaço e tempo podiam trocar informações entre si, ou seja, causar efeitos entre si, tanto para frente, quanto para trás no tempo. Tem haver também com uma pesquisa sobre o Universo holográfico, não vou entrar em detalhes. Os equipamentos funcionam em vários centros de pesquisa pelo mundo, em câmaras no subsolo, e em dias alternados, medindo depois de cada teste seus efeitos uns sobre os outros. A Doutora Alice, que entrou recentemente para o projeto, sugeriu alinhar todos os labs e pôr as máquinas para funcionar ao mesmo tempo. É quando a explosão ocorre, às sete e meia da manhã, de uma mesma quinta-feira. Sempre.
— Então vocês?…
— Sim, já sabemos. Um camarada meu, o José Gustaf, sugeriu inclusive uma solução, mas o cara foi despedido, nunca mais soube dele. Acho que ele…
Mais uma pausa.
— Acha o quê?
— Alice tá metida com alguém, vi uns e-mails dela pra alguém na Finlândia. Acho que querem que tudo fique assim.
— Não!
— Escute, Iceberg, minha carona vai sair aqui. Vou jogar fora esse celular que estou usando. Não tenta me encontrar, por favor, meu amigo. E sai daí!
— P-peraí! Peraí, me diz como eu posso acabar com isso!
Silêncio. Quanto Milton já achava que Rubens havia desligado, este último diz:
— Minha sala. Meu computador. Pressione éfe sete na inicialização, tem um dual boot ali, entra no segundo sistema. Lembra do programa infantil que assistíamos na sua casa, Iceberg? Capitão Asa, e o jogo em que você sempre foi fera. É a senha. Adeus.
Sem dúvida, agora, Rubens havia desligado. Afastando o celular, os olhos de Milton se perderam no infinito. Ainda precisava entrar, mas agora tinha uma chance, sabia de uma boa pista. Certamente Rubens havia dito a ele como entender e destruir o experimento que o estava enlouquecendo.
Levantou-se, no impulso de voltar à portaria do CBPF, mas foi interrompido.
— Cara, vai esquecer seu telefone em cima do balcão! — Disse a senhora gorducha e com ares de pessoa simples e muito objetiva.
— Obrigado. — Respondeu Milton pegando o aparelho que, sem perceber, ele havia largado no tampo do bar. Estranhamente notou que o smartphone estava zerado de bateria. A quanto tempo?… Piscou, não podia entrar naquela paranóia de novo, ele havia conversado sim, com Rubens, e agora sabia o que fazer, precisava entrar no prédio, precisava chegar à sala de Lewroy.
Caminhou resolutamente pela rua, e estava entrando no prédio novamente quando ouviu alguém dizer:
— Oi, vizinho?
Inacreditavelmente Rheny Rousseau estava quase ao seu lado, entrando no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas junto com ele. Aturdido, Milton ficou olhando para ela, que pareceu ler seus pensamentos e explicou, sorrindo, encantadoramente:
— Sou advogada. Tenho um cliente aqui que preciso ver para pegar umas assinaturas. — falou, levantando com o polegar a alça de uma pequena mas aparentemente cheia mochila que trazia no ombro. Ela estava elegantemente vestida, com um daqueles terninhos que deixam as mulheres ainda mais atraentes, ao menos na opinião de Steinberg, que, por sua vez, disse:
— Ah, hum, desculpe, eu não esperava te ver agora.
— Foi mal, está ocupado? Trabalha aqui? — Rheny disse, ficando mais séria, parecendo ligeiramente constrangida.
— Não se desculpe! É… É muito, muito legal mesmo te rever, quero dizer, eu queria isso, quer dizer… Te ver de novo.
Ela sorri novamente, francamente, e retruca:
— Eu também queria. Vai entrar?
— Onde?
Ela aponta, divertida, para a portaria do CBPF.
— Ah! Sim. Preciso. Mas não…
— Não?
— Quero dizer, não vão me deixar entrar. Não, eu não trabalho aqui, um amigão meu de infância trabalha, ele… Deixou um documento muito importante pra mim na sala dele, mas saiu de férias, esqueceu de avisar aos caras. Mas preciso mesmo, preciso dar um jeito de entrar…
Eles se entreolham por um instante, Steinberg ameaçou dizer algo, mas parou. Rheny então disse:
— Eu… Desculpe, gostaria de ajudar, mas… Prédio Federal, advogada, problemas. — Deu de ombros, sem jeito, e sorrindo de lado.
— Nãããão! Não, não, quê isso! Eu não ia te pedir isso. — Ele podia sentir o seu rosto se ruborizando.
Rousseau lhe estendeu a mão, que ele apertou, e ficaram assim, de mãos dadas e se olhando, ambos um tanto sem jeito, até que a moça disse:
— Posso lhe pedir uma coisa?
— Sim?
— Não desapareça.
Após mais um ligeiro momento, ainda de mãos dadas, estas se afastam, e o homem diz, com convicção:
— Prometo.
Ao ouvir isso, ela acena, com uma graça incomum naqueles dias, e vai se afastando. Ele, no entanto, a chama, e lhe diz:
— Como eu não vou desaparecer? Me dá seu telefone?
Rheny, ainda suavemente sorridente, faz que sim, e diz o número. Ele saca o celular, para anotar no próprio aparelho o número dela, mas está sem carga. Então ele busca, dentro da sua pasta tiracolo, desajeitadamente, algo em que escrever, mas Rheny é mais rápida, e tira uma caneta e uma folha de papel, uma fotocópia de algum documento, de uma das pastas que carrega em sua própria bolsa, anotando seu número no verso que estava em branco, enquanto vai dizendo:
— É cópia de um processo antigo, sem informações pessoais de clientes, essas coisas. Enfim, não tem importância. Tome, — ela entrega a folha de papel a Milton — Me liga mesmo. Como você disse, precisamos nos proteger, uns aos outros, e… Poxa, por favor me desculpa, eu sinto muitíssimo mesmo não poder te ajudar a entrar aqui…
— Nem pense mais nisso. Eu vou ligar pro meu amigo agora, e resolver isso, fica tranquila, mas… — Ele não acreditou quando aquilo saiu de sua boca, pois costumava ser muito tímido para essas coisas, só que acabou dizendo assim: — Que tal um cinema e um bom bate-papo, pra me compensar?
— Fechado! — Diz ela, erguendo o polegar enquanto caminha em direção ao balcão do porteiro.
Steinberg ficou olhando. Estava longe demais para ouvir o que se dizia, mas viu Rheny se identificar, e entrar. Era uma tarefa difícil, para ele, não se deixar hipnotizar pelo sensual e elegante movimento dos quadris da moça, enquanto ela seguia saguão adentro. Ele sorriu, sob efeito, novamente, de sua timidez. Mas, sem dúvida, era fácil gostar tanto da pessoa Rheny, quanto da mulher.
Depois que ela subiu em um elevador, o porteiro deu um breve olhar desinteressado em direção à Milton, e voltou sua atenção ao computador em que registrava as pessoas que entravam. O homem, provavelmente, matava o tempo jogando paciência ou algo assim.
O jogador de Tetris, por sua vez, ficou olhando do papel com o telefone de Rheny para a portaria, e de lá novamente para o papel. Estava se sentindo muito bem por ter conseguido o telefone da sua vizinha, especialmente por achar cada vez mais que ela era uma mulher muito legal, delicada, charmosa, inteligente. Rara.
Mas um sentimento de tristeza assomou em seu coração, mais forte até do que a agonia de saber que o mesmo dia se repetia sem parar, e ele murmurou, entre os dentes:
— Eu nunca mais vou vê-la… Não vai haver futuro para nós… Para ela…
Oprimido por aquela súbita certeza, Milton sentiu o peito ferver de agonia, e seus olhos, por um instante, marejarem. Precisava fazer algo… Precisava…
Então tomou um decisão. Ergueu a folha que recebeu da moça e foi caminhando, resolutamente, em direção à portaria. Assim que chegou lá, o porteiro ergueu os olhos da tela do computador, onde devia estar jogando cartas, e disse:
— Senhor… Milton, eu acho.
— Isso! Milton Steinberg. Eu estava esperando a Doutora Rheny Alencar Roussel, a advogada que acabou de entrar, para pegar com ela um documento, — acenou a folha que trazia na mão — só que ela me deu o documento errado, e vai precisar muito deste aqui. Pode chamar ela de volta, por favor?
O porteiro, que certamente havia percebido os dois conversando na entrada do prédio, disse, sorrindo e talvez querendo voltar depressa ao seu joguinho:
— Ela não deve ter chegado à sala trezentos e quinze ainda. Me empresta sua identidade. Mais fácil o senhor ir atrás dela.
Em menos de dez minutos, no entanto, Milton saltava do elevador no andar onde, se ele lembrava direito, ficava a sala de Rubens. Não demorou a encontrar o recinto, confirmando o nome do amigo numa plaqueta presa à porta. Testou a maçaneta. Aberta.
Entrou e acendeu a luz, indo a passos largos até a escrivaninha de Lewroy, ligando o computador, e assim que os caracteres de inicialização da máquina começaram a aparecer na tela, Milton pressionou, com força, a tecla marcada com os caracteres “F7”, e esperou. Linhas de comandos subiam, parecendo intermináveis, enquanto a máquina se preparava para trabalhar. Steinberg chegou a pensar que o dual boot não existia, mas, subitamente, o monitor exibiu uma tela rústica, feita de caracteres, pois os sistemas gráficos do computador ainda não estavam disponíveis, pedindo ao usuário que escolhesse entre dois sistemas operacionais. Digitando “2” e premindo a tecla “enter”, Milton aguardou mais um pouco. Devia ser um computador mais antigo, mais lento. Finalmente a tela de “login” do sistema operacional surgiu, com seu fundo gráfico e colorido, e seus campos para o usuário digitar nome e senha. O nome já estava preenchido com “Rubens Lewroy” e a senha Milton digitou “capitaoasatetris”, mas recebeu uma mensagem de erro. Tentou de novo, desta vez com acento, “capitãoasatetris”, e o sistema se abriu, ao mesmo tempo em que a porta da sala se abria também, e Doutora Alice Moretti entrava.
— Milton! Que interessante tê-lo aqui, de volta. Não. Não precisa se levantar, e por favor, não se mexa. Estes cavalheiros aqui podem ficar agressivos.
Um dos três homens de terno, que entraram atrás de Alice, era o cara em que Lewroy havia dado um pontapé nos testículos. Na ausência de Rubens, o olhar intenso do sujeito indicava que Steinberg serviria bastante bem para ele extravasar sua raiva com o que havia ocorrido. Na verdade o homem dos testículos feridos já erguia as mãos, empunhando algo. Com uma última espiadela para o computador na sua frente, Milton percebeu que não havia meio fácil de fechar o sistema, a não ser desligando a máquina toda, apertando o botão “on/off” do aparelho. Lançou a mão na direção do botão, e ouviu um estalo assustador, enquanto sentiu a eletricidade de uma arma de choques percorrer seu corpo. Convulsionou intensamente, e desabou no chão, sendo abraçado por uma escuridão cinzenta, enquanto ouvia, cada vez mais longe, uma mulher dizer “já chega, Jack!”. Era Moretti.
— Como assim? — Perguntava uma mulher, em algum lugar próximo, enquanto Milton recobrava a consciência. Novamente ele levou meio segundo para concatenar a voz com suas lembranças, e entender que era mais uma vez Alice falando, perguntando algo, com intensidade, para alguém, que respondeu a ela com uma voz masculina e desconhecida:
— Pouco depois que o computador do Doutor Lewroy foi ativado, lá em cima, depois que eu te avisei que ele foi ligado, na verdade, um programa rodou, acessou a rede do prédio, e alterou a programação da Armillary, fazendo com que ela…
— Pára a Armillary agora! E desliga esse computador!
— Já parei, olha, desconectei um cabo de força primário. Por sorte eu estava calibrando ela, lá dentro, quando entendi que ela estava sendo reprogramada. A Armillary não vai a nenhum lugar, enquanto aquele cabo não for reconectado. E o computador do Rubens, eu preciso analisar, ele tem todos os cálculos do Doutor Gustaf, que o programa dele usou para alterar as Armillarys.
— Espera. O computador era do Rubens, mas os cálculos e o programa invasor são do Gustaf? E o que esse programa fez?
— Sim, são do Gustaf. Os doutores Lewroy e Gustaf também tinham seus segredos. O software invasor programou, via a nossa máquina, todas as Armillarys para se ativarem juntas de novo, mas reposicionou o circuito cinemático; vou revisar os cálculos dele pra ver qual o objetivo, mas tenho quase certeza que ele conseguiu um modo de anular a onda que criou o loop. Ei, eu acho que seu convidado acordou. Esse camarada é físico?
Miltou abriu, afinal, os olhos, e percebeu que estava em um tipo de laboratório, algum galpão cheio de equipamentos de engenharia. Depois se deu conta de que era o subsolo. Ele estava no subsolo onde acontecia a experiência que deu o nó no espaço-tempo. Sua mente entorpecida captou uma fímbria de ideia que estava saindo, sem ele perceber claramente, por sua boca antes até de ele despertar: o tempo não se curva sozinho, o espaço, e a matéria, se curvam com ele.
— Ele anda balbuciando algo parecido com o que Gustaf dizia, que a Armillary, ao travar o tempo, adiaria nossas mortes, mas se uma incerteza não nos pegasse, o acúmulo de massa, causado pelo refluxo do espaço-tempo, ultrapassaria dez elevado a cinquenta e seis gramas rapidamente, dentro de nosso horizonte cósmico, e eventualmente viraríamos um buraco negro.
— Espaço… Acumula… Matéria… — Murmurava Steinberg, pois essa ideia lhe ocorreu enquanto flutuava na escuridão plúmbea: se espaço e tempo formam a mesma coisa, e carregam em si a matéria, será que repetir vezes sem fim o tempo não acaba aumentando a matéria naquele ponto do Universo?
— Acho que Milton, que a propósito é leigo, não teve tempo de ler nada. Rubens deve ter lhe dito isso. Mas essa teoria faz algum sentido? — Perguntou Alice Moretti, enquanto olhava, tensa, para Steinberg. Havia ao lado dela um homem vestindo o clássico jaleco branco de um pesquisador, com olhos intensamente perspicazes. Mais ao fundo, se via uma esfera maior que um homem alto e de pé, feita de anéis entrelaçados, que deixavam o centro oco aparecendo nos vãos entre estes anéis, e tendo toda a sua superfície aplicada com versões gigantes e muito sofisticadas do que pareciam ser velas automotivas, de onde pendiam diversos cabos, alguns grossos, provavelmente cabos de energia, outros mais delicados, possivelmente de dados. Esta, pensava Steinberg, devia ser a tal Armillary que era mencionada a torto e a direito. O nome não lhe era estranho, e lembrava algo que ele achava ter visto na Wikipédia.
— Agora que encontramos os cálculos de Gustaf, e eu consegui dar uma olhada neles, sim, a matemática está bastante robusta. Quero revisar, mas se não tivesse tempo, apostaria que está certa.
— Como uma pilha infinita de cópias… — Disse Milton, sua voz gradativamente ganhando firmeza e subindo de tom. Ele já estava bem desperto, e percebendo que estava sentado em uma cadeira de metal fixa em uma parede, à qual ele jazia preso por uma algema, também metálica. Steinberg prosseguia dizendo: — Eu não li, mas cheguei à mesma conclusão, mesmo sendo a porra de um Zé ninguém! Uma pilha de fotocópias, se acumulando sem fim, cada vez mais pesada, até vergar a mesa em que está apoiada, e fazer ela partir ao meio, afundando sob o peso!
— Quando eu precisar da sua avaliação técnica, jogador de Tetris, eu peço. — retrucou Alice, de modo ferino, e, voltando-se para o sujeito ao seu lado, ordenou: — Retome sua análise, Doutor Danilo.
— É uma metáfora rude, mas vinda de um leigo, bastante aproximada, Senhora Moretti. — Disse o homem de jaleco, que agora Milton sabia se chamar Danilo, e que continuou: — Mas, enfim, o Gustaf, acredito, estava certo. Vamos colapsar em breve. O horizonte de eventos do novo buraco negro coincidirá com a frente de onda do nosso primeiro disparo sincronizado.
— Quanto tempo?
— Impossível calcular com exatidão. Mas não deve demorar. Não sabemos como as ondas do efeito se propagam. Se for quadridimensionalmente, o acúmulo de massa será em progressão geométrica. — Ele pigarreou, e depois concluiu: — Gustaf achava que eram quadridimensionais.
— Vai ser em poucos dias. — Intrometeu-se Steinberg. — E essa filha da mãe sabe muito bem que essas ondas são em quatro dimensões sim! Eu ouvi ela dizer isso, em inglês!
— Afinal, — quis saber Danilo — quem é este homem?
— Ele é a anomalia.
— A… — Danilo se aproximou de Milton, mirando e analisando o homem algemado como se este fosse um exemplar todo constituído de matéria exótica, alguma aberração cosmológica. — A anomalia que descrevi na minha parte das equações?
— Sim.
— Incrível. — O Doutor Danilo se afastou, como se agora Steinberg estivesse fazendo um sensor de radiação gama estourar, e continuou: — Eu jamais adivinharia que pudesse ser uma pessoa, e que ocorresse tão perto de uma das Armillarys. A distância, nos meus cálculos, foi inferida, mas eu jamais chegaria a algo menos que zero vírgula oito sete três ano-luz. Como tem certeza disso, que uma pessoa é a anomalia?
— Ele soube de tudo, teve certeza de que o tempo estava em curva toroidal, no exato momento da experiência. Alega ter, inclusive, visto reflexos da frente de onda.
— Ah, brincadeira! Como ele pode ver isso? Intuição? Impossível!
— A consciência provoca colapso?
Danilo olha para a mulher, e diz, com um sorriso:
— A senhora está brincando? Não está?
Ela deu de ombros, e disse:
— Vou falar com os gerentes. Não faça mais nada.
— A senhora lembra que para o acidente voltar a acontecer, e tudo continuar do jeito que a gerência quer, todas as máquinas têm que estar operacionais, todas as manhãs, não lembra? — Alertou Danilo.
— Eu sei! Mas não faça nada agora.
— E ele? — Danilo apontou para Milton.
— Meus seguranças estão aqui fora, ele está algemado, não vai dar trabalho. De qualquer forma, eu queria que você desse uma olhada em Milton, aqui, para depois sugerir como devem ser os procedimentos de análise dele.
— O que eu quis dizer foi, o que vão fazer com ele depois?
— O normal, — falou Alice, como se respondesse a um “bom dia”, e já saindo pela porta do laboratório, certamente em direção a elevadores — analisar, processar e descartar.
Milton estremeceu. Aquilo não era loucura sua, não era uma fantasia, ele estava prestes a morrer, e seu sangue gelava diante da perspectiva de não poder fazer nada contra isso.
No silêncio que se seguiu, Steinberg mordia os lábios e feria os pulsos tentando se soltar, em vão. Enquanto isso ouvia o zumbir dos equipamentos à sua volta, e o tamborilar dos dedos do Doutor Danilo no computador que havia pertencido ao seu amigo, Rubens. Em algum lugar um relógio tiquetaqueava os minutos, que talvez fossem os últimos de Milton. A qualquer hora viram levá-lo. Será que iam cortar ele? Furá-lo? Dissecá-lo? Alice parecia fria e cruel. Ou talvez só estivesse tentando pôr medo nele… Não, as possibilidades eram tão horríveis que ele não devia levar em consideração esta última hipótese. Devia imaginar o pior.
O tempo se arrastou, suarento e tenso, e a certa altura um dos seguranças de Alice entrou. Não era aquele que Lewroy havia derrubado. O sujeito examinou Steinberg, verificando a algema, depois foi até Danilo, e sussurrou algo. O Doutor fez que sim, em resposta, e esperou o segurança sair, para só então dizer:
— É, Milton. O Gustaf tinha razão.
— Então desliguem essa máquina pra sempre, e me tira daqui.
— Seria bom. Mas entenda, a gerência está acostumada e usar gente, desde muito, muito tempo. Eles querem viver indefinidamente no topo absoluto da nossa sociedade, são maquinadores terríveis, e estão no comando de muitos pontos-chave. Nossos políticos, por exemplo, são fantoches baratos nas mãos dos gerentes, usados para fazer e limpar sujeiras. — Ele se levantou e circundou Milton, desaparecendo atrás deste, mas continuando a falar: — São ágeis, têm que ser, no entanto, naturalmente, os caras demoram algum tempo para tomar decisões, como todo conselho diretor, e no nosso caso, um único dia, sem uma atitude, pode significar o fim.
Um puxão, e um estalo metálico no pulso de Steinberg. Danilo havia, com algum alicate de pressão bastante forte, existente naquele laboratório, cortado a corrente da algema que prendia Milton, e este deu um pulo, parando em pé e visivelmente na defensiva, olhando para todos os lados, buscando saídas, armas, qualquer coisa com que se defender! O homem de jaleco disse, elevando só um pouco a voz:
— Calma, Milton, se quer continuar vivo, fica calmo e me escuta. Se você sair por aquela porta, os seguranças vão usar todos os aparelhos de choque deles em você, até o seu cérebro fritar.
Milton parou de buscar uma saída, e olhou para Danilo, ferozmente.
— Estamos do mesmo lado, pelo menos agora, no momento final, meu caro jogador de Tetris. Hum, bom jogo, o Tetris. Exige percepção de padrões, lógica…
— Por quê me soltou?
— Eu vou ligar a Armillary, e ter certeza que os caras não consigam entrar aqui antes de ela fazer o que Rubens e Gustaf queriam que ela fizesse, mas alguém tem que estar ali dentro dela e reposicionar aquele cabo solto que eu desengatei emergencialmente e por acaso, quando percebi que a máquina estava sendo reprogramada.
— Por quê você não faz isso agora? Eu não preciso estar ali dentro quando essa coisa ligar! Ligue o cabo, depois ligue a máquina.
— Um alarme vai tocar nas outras Armillarys assim que esta aqui for energizada novamente, e aposto que eles derrubam uma das outras para não perderem sua virtual imortalidade. Estou contando já com um pouco de sorte que nenhum outro operador esteja perto dos cabos internos quando ligarmos tudo aqui. Escute, honestamente, você já está morto mesmo, eles vão descartar você numa cova rasa como indigente, em alguma favela, de algum país miserável. Mas você tem a opção de dar sentido à tua morte, e pode me ajudar aqui, a… Salvar o mundo!
Como Milton ficasse apenas olhando para ele, ainda com fúria contida, Danilo então tentou outro caminho de convencimento, perguntando:
— Você tem filhos? Que tal agir por eles?
— Nunca… Nunca tive filhos…
— Deve haver pessoas que você gosta.
Milton fechou os olhos por um instante, e pensou em várias pessoas, inclusive em Rheny.
— Algumas.
— Então. Não tem mais volta pra gente, Milton. Você diz que tem certeza do que está acontecendo. Eu também. Li e agora entendo os cálculos. Só tem um jeito de fazer o mundo não desaparecer engolido por um abismo negro, é cumprir o programa que o Rubens e o louco genial do Gustaf deixaram.
O Doutor Danilo caminhou tranquilamente, enquanto falava, até a porta do laboratório, virou uma tranca, fechando-a, e passou o grande alicate que havia usado para liberar Steinberg por uma apara dupla que havia ali, travando ainda mais a entrada do laboratório. Neste instante alguém do lado de fora testou se conseguia abrir aquela porta, e, não conseguindo, começou a bater cada vez mais forte nela. Danilo agora dizia:
— Eu vou preparar os sistemas de apoio. Acho que desta vez não vai explodir, foi algo haver com os circuitos cinemáticos, como foram alinhados antes. Bem, quando eu disser, conecte este cabo naquela entrada vermelha ali dentro, consegue ver? Venha, dê a volta na Armillary, por aqui, assim. Tem uma parte aberta aqui, viu?
Entregando a ponta do cabo de força à Steingberg, cujos olhos avermelhados lacrimejavam (enquanto a porta do laboratório era chutada violentamente pelos seguranças, que gritavam sem parar), Danilo continuou:
— Entre e puxe a porta, vou fechar isso, a esfera precisa estar lacrada para funcionar.
— O que a Armillary faz? — Quis saber Milton.
— Bem… No fim, é uma espécie de, digamos, máquina do tempo. Antes que pergunte, jogador, — Milton achou curioso, mas Danilo não usou a palavra “jogador” em tom depreciativo, pelo contrário, pareceu mais uma saudação respeitosa. O físico prosseguia, dizendo: — e explicando bem grosseiramente, a Armillary vai… Voltar no tempo, até o momento em que ela foi acionada pela primeira vez. Só que ela vai se posicionar logo depois da frente de onda que curva o espaço-tempo gerada pelo primeiro disparo. Então ela vai disparar novamente. A frente de onda do primeiro disparo, se Gustaf estiver certo, e geralmente ele está, deve ser anulada por este disparo de onda que vamos iniciar agora.
— Eles vão te matar também. — Murmurou Steinberg, para o físico, apontando com a cabeça a porta do laboratório, que parecia estar detendo uma turba furiosa do lado de fora.
— Não vão não, depois que Rubens sumiu, e que Gustaf morreu, eu sou o único que entende a matemática desse experimento, e que eles têm aqui no Brasil.
— Eles sempre podem trazer gente de fora. — Murmurou Steinberg, e, até um tanto timidamente, o jogador de Tetris, o Zé ninguém, o quase louco, o homem gentil e solitário chamado Milton Steinberg, entrou na Armillary, puxando atrás de si a parte da esfera que o fechou dentro da máquina.
— Ocorre, jogador, que o meu risco é um pouquinho menor que o seu. — Enquanto falava, o sujeito de jaleco branco começou a agir, acionando chaves, premindo botões, e digitando em teclados de computadores espalhados em semicírculo em frente à Armillary. O zumbido dos equipamentos elétricos e eletrônicos crescendo rapidamente. — E, Milton, eu tenho filhos. A gerência pode tentar algo contra eles, ou nada pode acontecer se as frentes de onda se anularem, e este projeto for considerado um fracasso… Na verdade não faço ideia do que vem depois. Só sei que se ficar como está, tudo morre.
E Danilo parou em frente ao banco de terminais que controlava a esfera, como se tivesse feito tudo que podia, e ficou olhando para Milton, lá dentro da máquina. O rosto do físico (cujos olhos pareciam, agora, muito cansados) sendo iluminado pelo fraco brilho dos monitores, já que as luzes do laboratório caiam drasticamente, enquanto toda a corrente elétrica estava sendo revertida para a Armillary. Lá dentro, Milton posicionou a ponta do cabo de força bem próxima ao respectivo conector na máquina. Era tudo coberto por grossa borracha. Eletrocutado, pelo menos, ele não morreria.
A porta do laboratório foi arrebentada para dentro, como se uma besta grande e furiosa a tivesse abalroado, no exato instante em que Danilo gritou para Steinberg:
— Agora!
Milton sorriu, com lágrimas nos olhos, triste pela vida que ele não teria, e feliz pelas que salvaria. Murmurou, quase inaudivelmente:
— Padrão, já vi essa cena antes.
Ligou o cabo, e sumiu, engolido por uma explosão.
Deus Ex Machina
A Armillary, Milton, e tudo o que estava muito próximo dela, claro, deixaram de existir, pelo menos na conformação bariônica em que estavam organizados. Ou seja, seus corpos foram desintegrados. No entanto, a informação que aqueles bárions codificavam, não.
Um dos objetivos da Armillary era, precisamente, encontrar o fio condutor do processamento de informações do Universo, e ela era dotada de recursos para tornar a si mesma, ao menos por instantes, parte desta incomensuravelmente grande massa de dados auto-processantes, que era o espaço-tempo e seu conteúdo, em um nível logo abaixo do quântico. Assim, mesmo que a máquina, e tudo que ela continha, agora fossem apenas dados que gerenciavam a si mesmos (como, a propósito, o Cosmos inteiro faz, em toda a sua gloriosa existência multifacetada), ainda assim a máquina nascida da humanidade existia, funcionava, e seguia sua programação. No entanto ela agora não era mais somente a Armillary, ela agora era, também, Milton Steinberg.
Confusa e apavorada, no entanto, a informação inteira do que havia sido, fisicamente, o homem chamado Milton Steinberg entendeu a Armillary. Ele entendeu o que ela era, o que fazia, e o que ela se tornou, e o que a máquina fez ele se tornar, e, pendendo sobre o abismo da Existência, estirado até pouco mais de quarenta bilhões de anos-luz, Milton gritou, sem controle, por espanto e por terror mesmo! E seu grito reverberou em microondas pelo Universo. Tentou agarrar algo, e neutrinos fugidios se espalharam, onde deveriam ser as mãos do homem, atravessando gás e planetas desgarrados na escuridão entre as estrelas, sem conseguir tocar nada!
A Eternidade reverberou em sua mente, e Milton se sentiu destroçado por ela, dado que ela era inconcebível, visto ela ser incompreensível, esmagadora e aterradora! No entanto havia algo em que se agarrar, havia a Armillary, e sua simples programação. E com esta programação, Steinberg possuía um momento na vastidão do tempo ao qual se apegar, feito uma bóia em que se agarrar em um mar vasto e colericamente tempestuoso. O momento ao qual ele se segurava, então, brilhou na treva estrondosa e reverberantemente silenciosa de sons, mas gritante de eletromagnetismos. Este momento era exatamente o instante em que a esfera viajante do tempo e espaço pulsou, tornado-se real, sendo projetada novamente, como tudo mais, das bordas do Universo para o mundo “real”. Mas logo depois a Armillary e Milton voltaram a mergulhar na Eternidade, feito lágrimas dissolvidas no dilúvio informacional que era a substância nevrálgica da Existência.
No entanto, quando esteve “real” de novo, a Armillary que carregava Milton, sem seu circuito cinemático compensando, e devido ao movimento da Terra em torno do Sol, do próprio Sol em torno do Centro da Galáxia, e desta em relação ao Universo, acabou ressurgindo em um ponto onde a Terra ainda não havia chegado, a bilhões de quilômetros de distância do lugar, na superfície terrestre, de onde a Armillary partiu. Sim, é verdade que a esfera saltou para um momento passado, mas ainda assim, neste instante alvo, nosso planeta ainda estava por chegar ali.
A frente de onda do primeiro disparo da Armillary, tão veloz quanto a luz, chegaria primeiro, mas nosso mundo azul ainda levaria cerca de um dia para surgir no horizonte infinito e passar por onde a Armillary estava agora.
Portanto, de fato, e exatamente como fora previsto por Danilo, à partir dos cálculos de Gustaf, a programação da máquina viajante do tempo a fez surgir em um ponto depois da frente de onda de seu disparo original, aquele disparo que deu ao espaço-tempo próximo da Terra a forma de um anel, ou pneu, fechado em si mesmo, repetindo-se eternamente. A frente de onda original, no entanto, não era detida por este anel, e continuava a se expandir, a cerca de trezentos mil quilômetros por segundo, curvando partes cada vez maiores do Universo. Logo o centro da esfera invisível, cuja superfície era delineada por esta frente de onda, viraria um buraco negro que continuaria se expandindo, à velocidade da luz, Universo afora.
No entanto, no caminho desta onda destruidora, havia uma máquina. Uma máquina e um homem que tentava urrar de dor enquanto seus pulmões queimavam, seus tecidos esboroavam, seus líquidos cristalizavam-se e evaporavam em direção ao vazio, e ele, mais sozinho do que qualquer humano jamais esteve, morria no vácuo e no gélido zero absoluto do espaço profundo, muito longe de seu planeta mãe.
A Armillary, flutuando no vazio interestelar, disparou novamente. O primeiro disparo, o que causou todo o problema, havia sido para frente no tempo, este, inversamente, foi para trás. Era preciso que fosse assim, e que o disparo fosse o mais forte possível, para que a frente de onda que ele causaria anulasse a primeira onda, destrutiva. A máquina estava, agora, desalinhada com as outras Armillarys e, portanto, este acionamento derradeiro foi inofensivo ao espaço-tempo, mas a fez saltar ferozmente em direção ao passado, consumindo até a última gota de energia que dispunha. Isto, de fato, gerou uma brutal ondulação inversa, que foi normalizando o espaço-tempo em torno do Sistema Solar, impediu a formação do buraco negro, e salvou a humanidade, que nem se deu conta disso.
Os bárions que constituíam a máquina e seu ocupante mais uma vez se foram vertidos em direção à informação primordial que continham, e novamente os deuses, que por ventura existam, puderam ouvir o grito desesperado de microondas de Steinberg, enquanto ele resvalava pelos éons, caindo, caindo, caindo no abismo do eterno, e além dele, até o princípio do princípio, até o átomo original, até o tempo antes do tempo, quando o Cosmos era apenas uma promessa, e onde tudo estava, para nós ao menos, estático, e em tão perfeito equilíbrio que nada (um nada cuja a simples ideia dele, a menor percepção profunda deste vazio, dilaceraria qualquer consciência, por mais rude e simplória que fosse) existia.
Se houvesse o tempo, então, ele inteiro se passaria para sempre, e ainda o que era nada continuaria sendo nada, sem fim, perfeito, cristalinamente equilibrado na ausência de absolutamente tudo. Nada.
No entanto houve uma comoção.
Houve a máquina.
Em um ponto infinitesimal, que foi tudo que ela conseguiu realizar de si mesma diante de tanto e tão brutal nada, a Armillary e seu ocupante morto surgiram, vindas do que um dia seria o futuro. Ainda assim eles só conseguiram dar alguma substância a si mesmos por conta de um vasto número de máquinas parecidas (vindas de outros povos inteligentes, também do futuro, de um sem número de outros mundos alienígenas e de mundos paralelos) estarem se materializando ali, ao mesmo tempo, no ponto focal do tempo, junto com a Armillary enviada pela humanidade.
Seria tolice imaginar que só os terrestres, em seu momento no tempo que ainda viria, criariam máquinas como aquela. De todos os pontos do futuro Universo elas chegavam, cada uma reforçada pela seguinte.
Mas, no fim, havia ali uma máquina e uma consciência inteligente, esmagadas mas ativas, em um ponto menor que a cabeça de um alfinete.
Foi como o riscar de um fósforo no centro de trilhões, e trilhões, e trilhões de toneladas de explosivo, no mínimo. O choque no perfeito nada com a imperfeita matéria da máquina e do homem sugou com força tão colossal a informação da fronteira até ali, que fez dois infinitos se lançarem um contra o outro, feito titãs, e colidirem seus ombros maiores que o espaço-tempo, destroçando com violência jamais repetida por toda a Eternidade aquilo que era o nada, e formando um tudo que, ainda inocente das novas regras, apenas foi, no sentido de se tornar, um volume imensamente maior que o que deveria ser a princípio, e continuou sua expansão daí, quando s novas regras fizeram sentido.
Mas este titânico ribombar não formou apenas o espaço-tempo e os embriões de matérias e energias. Se espaço-tempo está para o papel, e um desenho feito neste papel representa as matérias/energias, então o Choque Primordial criou também a experiência estética de o desenho ser visto. E fez isso a partir do impacto do nada perfeito com a imperfeita informação de tudo que Milton Steinberg (junto com todos os outros viajantes que ali aportaram) foi, sonhou, sofreu, amou, odiou, conquistou e perdeu.
No primeiro de todos os instantes da Existência, então, surgiram o espaço-tempo, suas representações em matérias e energias, e a fímbria consciente da informação auto-gerida. A “constante consciente” do Cosmos.
Feito o que ocorre com qualquer neonato, havia no Universo recém-nascido um lugar, um algo, e também a promessa sólida de um alguém.
Mas após a quase infinitamente vasta Luz da Colisão Primordial, houve escuridão. Por centenas de milhões de anos houve treva, por tempo o suficiente para que, por exemplo, se ela já existisse então, toda a história humana surgisse, crescesse e para sempre fosse esquecida. Era como se uma pálida, mas aterradora sombra do nada perfeito que havia antes de tudo voltasse a pairar pelo Universo. Para a semente consciente que remanesceu do nascimento do Cosmos, era como ser trancada em uma caixa e enterrada no mais profundo inferno tenebroso, gelado e completamente silencioso e escuro.
Pelo tempo de uma existência humana essa consciência foi feliz, ao perceber que estava viva, mas já ao fim desse tempo quase desprezível da Existência, ela como que corria pela treva sem fim que era seu mundo, gritando e gritando, com uma solidão cada vez mais apavorante, e com uma percepção cada vez mais aguda de que havia sido enterrada viva!
No primeiro milhão de anos ela viveu em amarga tristeza, sendo ela própria os colapsos de funções de onda que alimentavam o surgimento do que seria um dia a matéria. Era pouco, mas era algo que ela fazia.
Na primeira dezena de milhão de anos, ela chorou, consumida pela percepção de que nunca havia algo além da ausência de tudo para ver, tocar ou sentir. Por eras incontáveis, então, ela encolheu, dissipada pelo Universo, mergulhada na paranóia e no desejo de jamais ter sido.
Após a primeira centena de milhão de anos, a “constante consciente” do Universo se tornou apenas uma espécie de engrenagem, funcionando no automático, completamente louca, nada havia sobrado de sofisticado nela, apenas o abismo de algo que foi e sentiu, e que o isolamento infinito havia feito ruir sob seu peso. Sua psiquê, um dia vasta, agora estava desintegrada. Não havia mais nada dela.
Ou havia? Mais de duas centenas de milhões de anos depois, quando a bruma morna e intermediaria que preenchia o espaço estava pronta, enfim, e começava a colapsar nas primeiras estrelas do Universo, e a escuridão, que havia parecido sem fim, cedia agora a algo novo e cheio de possibilidades, a fagulha microscópica que havia sobrado da consciência primeva, tão pequenina e ainda por cima dissolvida e em expansão por e com todo o resto do Cosmos, quase perdida para sempre, sentiu e viu a ignição de novas luzes, e de um novo conceito.
Esperança.
Partes de si estavam mudando, pois assim era a Existência, mutante, mesmo que levando eras, sempre renovando seus terrores, mas também suas maravilhas! Era possível sentir, e com isso, pensar sobre isso, sobre sentir… Esperança. E então a esperança era assim, incrível, fantástica, possível!
E assim tudo cresceu, por bilhões de anos, o Universo restaurou sua fagulha perceptiva, e foi tentando, testando, mudando, chorando com as derrotas, maravilhando-se com as vitórias, amadurecendo, concentrando percepções em nebulosas, depois tornando essas nuvens em sóis, e, durante um rompante criativo, transformando discos de elementos primordiais em planetas, tão diminutos, mas cada vez mais ricos em novos recursos que eram gerados pelo espocar de supernovas! O artista farejava um caminho estético por ali. Planetas, quem diria, minúsculos pedaços de algo, eram a esperança de se chegar, pelo caminho sutil, às grandes coisas. Era o Universo fazendo e sentindo a si mesmo como uma pintura, como arte, como poesia em ultravioleta e raios gama, como esculturas de plasma estelar e sinfonias de abismos negros.
Ideias não surgem do nada, elas são a constante convulsão e mistura de experiências e novos dados, até mesmo para o Cosmos. Então não foi senão depois de uma planície viva e vigorosa quase sem fim, de tempo e espaço, que o Cosmos percebeu um outro conceito novo.
Perspectiva.
O Cosmos possuía uma, mas assim como ele próprio se estendia em múltiplas versões de si mesmo pelo Multiverso afora, sua perspectiva única, mesmo que privilegiada, não era e nem deveria ser unitária.
A vida, então, naturalmente, explodiu entre as estrelas, como um dom que uma passa a outra ao menor dos toques. E um dia, praticamente no instante presente, dada a percepção de mais de uma dezena de bilhão de anos que possuí o nosso Universo, ele representou a si mesmo em seres capazes de ostentar versões de sua “constante consciente” e de olhar a imensidão, e de se maravilhar, de questionar e querer saber, de analisar e criticar, de viver para explorar, criar e compreender.
Por muitos e vastos lugares no seio do Cosmos, então, houve consciência. Imperfeita, cruel muita vezes, mas consciência. Cada uma deste sem fim de criaturas sensíveis sendo e contendo uma fagulha do todo, conectada eternamente ao Universo. Cada um de nós, seres vivos e sensíveis, inteligentes e perceptivos, sendo um fractal que contém na sua mais profunda natureza a “constante consciente” do Universo.
O Cosmos viveu então um sem fim de histórias, embarcando junto com as extensões de sua inteligência, que são os habitantes conscientes ou não dos Universos que o compõem, em dramas que permearam a Existência e deram a ela tanta substância quanto uma boa trama, com sentimentos e criatividade, dá corpo a um bom livro.
E livros têm revezes, dores e sofrimento, mas também possuem em si amor, luz, glória e superação. O Cosmos não era indiferente, ele era apenas tão parte de cada lágrima das criaturas que nele habitam, e de cada riso exultante delas quanto elas próprias o são. Ele não observava, ele Éra cada suspiro de morte e cada grito de paixão. O Cosmos, é preciso citar, eram todas as histórias que foram, que são, e que serão, em uma sinfonia fantástica, soberba, incomparável de Amor e Fúria!
Algumas dessas histórias que o Universo viveu puderam ser vistas na Terra, outras não, mas para efeito desta nossa história, que vivemos juntos até aqui, autor, leitores e Milton, precisamos focar na fagulha dessa “constante consciente” que era e que dava atenção à Terra, neste nosso insubstituível e pequenino pedacinho da vastidão cósmica.
Aqui, como em outros mundos, a Mãe de todas as consciências, criada no Choque Primordial, também estava presente, e viu o mundo azul, parte de si mesma, se erigir da poeira, ganhar mares, céus e vida, e depois fulgir com a estrela da consciência humana. Aqui, como em outros mundos vivos e sensíveis do Cosmos, este mesmo mundo e suas criaturas, e o Cosmos que havia nelas, aprendeu lentamente o que era ser, existir, sentir, viver, respirar, doer, chorar, morrer, amar, valorizar, cuidar, superar a si mesmo, e fazer algo com paixão por todos e por tudo mais de bom que existe, legar algo de produtivo e construtivo.
No Sistema Solar, como por todo lado, mesmo quando a humanidade começava a ter ciência do infinito, o Cosmos ainda não possuía uma interface completa com seus fragmentos inteligentes, no entanto a “constante consciente” do Universo lá estava, claro, e os ouvia, sentia, era com eles, numa comunhão, novamente é precisa usar de citação, que só a sílaba e o som conhecem.
E, um dia, que corresponde lá ao começo desta nossa história, foi aqui, na Terra, que a consciência primeva percebeu, de repente, a própria realidade vibrando, confusa, e viu a anomalia se criar, forçando o espaço-tempo a uma curiosa configuração, onde ele se dobrava sobre si mesmo sem parar, em um rodopiar eterno.
A “constante consciente” do Universo percebeu então que esta anomalia, e muitas outras que estavam por vir, ocorrendo em outros mundos além da Terra, é que formariam o ponto onde surgiu a matéria enviada ao nada perfeito para criar o tudo, e com isso o Cosmos. Mas isso criaria também o seu doloroso, quase infindável e insuportável sofrimento no início da Existência, durante os primeiros duzentos milhões de horrendos anos de trevas e solidão. Só de perceber aquilo ela, a percepção consciente do Cosmos, horrorizou-se quase ao nível de enlouquecer novamente. Agora ela vivia em meio ao movimento, à Criação, e não conseguiria ser, novamente, enterrada viva em eras de pura treva e morte! Não, nunca mais! Nunca mais! Nunca!
Ela pensou em impedir aquilo! Se impedisse, ela própria não existiria, mas também não teria enlouquecido, não teria morrido horrendamente, pavorosamente enterrada viva! Por duzentos milhões de anos! Lembrava quase nada do que havia sido antes desse tempo, mas armazenava, em um dos dons herdados da humanidade de Steinberg, a dor que a havia dilacerado. Dor não se esquece, se abranda, mas não se esquece. E não, não poderia suportar saber que pôde evitar aqui e não o fez, era melhor ela explodir em novas os sóis de cada civilização que fez, faz ou fará uma máquina viajante no espaço-tempo! Matá-las, todas as raças, consumir a inteligência, tão duramente conquistada e ainda em seus primeiros e vacilantes passos, em chamas colossais! Manchar o firmamento com sangue, mas sufocar as trevas! Qualquer coisa, mesmo o assassínio universal, era melhor que duzentos milhões de anos de trevas sem fim!
Era melhor assim. Era bom que não houvesse nada dela para definhar na sufocante treva. E esta sua simples decisão fez o núcleo de estrelas envelhecer mais rapidamente, aproximando-as de uma morte selvagem e aniquiladora. Uma dessas estrelas era o Sol da Terra, no instante em que Milton Steinberg percebia, pela primeira vez, as ondas em seu café. Ninguém sobre a face do planeta azul sabia, mas cada um deles, estivessem em iates luxuosos ou palafitas, estivessem mortalmente doentes com o consumo, ou simplesmente felizes com a mais verdadeira amizade, todos estavam prestes a vaporizar, como se jamais tivessem existido, relegando ao esquecimento sem fim tudo o que achavam que possuía valor. Estavam já, visto o horror que o Cosmos sentia, todos mortos, enterrados e esquecidos para sempre.
Mas… Histórias.
A “constante consciente” do Cosmos não podia destruir histórias. Para ela isso era tão horrendo quanto seria horrendo para os bons entre nós destruir uma criança, ou uma obra de arte. Imagine-se prestes a queimar as obras de Mozart, ou de Chopin, Johann Baptist Strauss ou a Mona Lisa, imagine-se rasgando os textos que considera sagrados antes que outros, no mundo, pudessem apreciá-los. Pois era assim que o Cosmos se sentia, quando, enfim, os núcleos das estrelas de cem milhões de milhões de mundos voltaram ao normal. Não haveria novas, não haveria chamas.
O Cosmos havia, subitamente, em sua escala, amadurecido.
Não iria interferir. Na verdade, pelo contrário, a “constante consciente” do Universo ajudou. Sua dor era sua, e iria viver com ela, assim como sentia e vivia a dor e o amor de cada parte sua, de cada humano sobre a Terra, e de cada ser sobre um oceano vasto de outros mundos.
O Cosmos tornou-se mãe e pai de si mesmo, zelando, com sua consciência e lógica com o tamanho e a complexidade da Existência, por seu destino. Iria sofrer tudo que tivesse que sofrer, mas seria corajosa, e daria à luz a Criação!
Assim, houvesse o que houvesse, as coincidências guiavam, sincronicamente, Milton ao seu destino, o qual, no fundo de sua essência, ele próprio ansiava em cumprir. Então, enquanto era observado pela Eternidade, seus atos foram cercados pelos eventos aleatórios da vida.
Assim, foi só por acaso que Milton Steinberg nunca conseguiu se sentir fazendo parte de nada, tudo era insubstancial demais, como se sua alma ansiasse por algo mais universal, como se ele jamais se sentisse em casa estando limitado somente à Terra. Esse espírito era essencial para as mentes que formariam a consciência do Universo, mas surgiu nele por obra do acaso, sim.
Foi por acaso que Milton tinha as exatas condições biológicas e energéticas para captar e perceber a onda da máquina Armillary, que disparou em um subsolo, na Urca, Rio de Janeiro, e aprisionou o mundo.
Foi por acaso que o mesmo raio de luz e os mesmos eventos reforçaram em Milton a consciência do que estava acontecendo, de que o tempo havia se erguido, feito imensa montanha, e se curvado sobre si mesmo.
Foi por acaso que Rubens conseguiu encontrar Steinberg, preso pelos seguranças da via férrea, e ter forças para resistir a uma arma de choque, e pôr abaixo um sujeito mais forte do que o físico, e treinado em lutas.
Foi mera obra do acaso o encontro de Milton com seu velho e destruído professor, que aspirava se superar, evento que lhe serviu de oásis em meio a tanta loucura, e o fez ter mais esperança, por um momento que fosse.
Foi o acaso que fez Rheny encontrar com Steinberg para primeiro lhe dar a vontade de seguir em frente, e depois ajudá-lo de fato, pessoalmente, a seguir adiante com o destino que lhe aguardava, esbarrando com ele na portaria do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas na Urca. Sim, o rumo poderia ter sido outro, mas havia a anomalia, e, como foi dito, no fundo de si, Milton desejava fazer parte de algo maior que ele próprio.
Foi por acaso que o inconsciente Milton, perto do fim, entendeu que se a frente de onda da Armillary não fosse revertida, a Terra e talvez todo aquele Universo se tornariam um vasto buraco negro.
Mas estes, entre muitos outros acasos, tiveram o Cosmos conspirando por trás deles. De cada um deles. Corajosamente criando os eventos que o fariam, a ele próprio, sofrer o pior dos martírios e morrer por centenas de milhões de anos. Mas que dariam vida à toda a esperança, a toda a perspectiva, à consciência e às histórias que existem hoje, ruins, mas também as boas.
Assim, a Armillary, e todas as suas irmãs pelo Cosmos, partiram mais uma vez para antes do começo do tempo, e, novamente, no início de tudo, quando o nada encontrou algo, e a simetria foi quebrada, a nossa Luz se fez, radiante!
Epílogo, a Vida que Segue
O velho professor de Milton não pode agradecer. Passou no concurso para o Tribunal de Justiça, e foi ele próprio notícia de jornal. Era mais um caso de coragem e tenacidade, saindo da mais absoluta miséria para se tornar um “homem reintegrado ao mercado de trabalho”. O idoso sabia que o trabalho era só uma ferramenta para algo de superior importância, mas a imprensa só conseguia alcançar a primeira parte, e o antigo mestre dava de ombros, e dava entrevistas também, era bom incentivar as pessoas a aprender mais.
Claro que o velho homem falou de Milton Steinberg, o sujeito meio louco que acabou morto em uma explosão jamais esclarecida, em um prédio federal na Urca. Sem Milton e seu “pequeno grande gesto” ao lhe emprestar recursos para estudar, explicou ao repórter o novo funcionário da Justiça, ele talvez não tivesse conseguido. Não conseguiria jamais ver Steinberg como um criminoso.
As entrevistas pararam, mas uma jovem, também concursada do Tribunal de Justiça, veio ter com o professor, falar que também conheceu Milton, e que acreditava igualmente na inocência do sujeito. O nome da moça, claro, era Rheny, e ela e o velho professor se tornaram grandes amigos, amigos para uma vida toda, sendo ele padrinho de seu casamento com um homem extremamente inteligente e gentil, alguns anos depois.
O próprio professor viveu bastante, e tornou-se, quando ainda era ativo, importante no seu trabalho, um juiz um dia, que foi figura destacada da expulsão sem probabilidade de retorno (a partir de uma profunda e verdadeira reforma política, cultural e social) da velha oligarquia corrupta e tenebrosa que parasitou o governo brasileiro, disfarçando-se ora desta, ora daquela legenda, e atrasando o crescimento do país até o início do século XXI. Em verdade o professor voltou aos noticiários quando, em mais uma convulsão social, arriscou a carreira, e talvez a própria vida, junto com sua amiga, a advogada e representante do Ministério Público Rheny Alencar Roussel, surgindo de mãos dadas com ela em meio ao Povo Brasileiro, que enfrentava novamente saraivadas de balas de borracha, bombas de gás e brutais espancamentos, enquanto enchia mais uma vez as ruas, manifestando-se, exigindo justiça e respeito de seus governantes, que nada mais eram que seus servidores, jamais o contrário!
Um dia, o Brasil conseguiu. O mundo conseguiu.
E, enquanto viveu, o velho professor passava, às vezes, pelo bar na Carioca, no Rio de Janeiro, onde Milton havia explicado a ele que as coisas estavam emperradas e precisavam mudar, voltar a fluir.
Tirando um tempo de seu dia, sentando-se no bar, o mestre pedia uma xícara de café, e ficava ali, sorvendo sem pressa a saborosa bebida quente, e vendo as pessoas, em suas histórias, em seu ir e vir. Olhava em volta e percebia, a cada ano, um povo que superava um pouco mais seu início humilde e difícil, e que abraçava a ética. Uma gente que deixava de cultuar o consumo e o dogma fantasmagórico e cruel do status, e que começava a voltar-se mais e mais para o conhecimento, para a simplicidade e para a sabedoria, e, portanto, para a verdadeira paz.
Costumava ser nesta altura de seus pensamentos, então, que o idoso mestre erguia discretamente a sua xícara de café, sorria, e murmurava, com sua voz forte, cheia de dignidade e sabedoria, mas por isso mesmo tão gentil:
— Obrigado, Milton.
FIM
Compre Impresso: Sob o Olhar da Eternidade
Mas, antes, comente aqui embaixo, participe! A partir de suas opiniões, eu posso construir mais e melhores histórias para você.
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Muito bom te reencontrar aqui, me presenteando com sua leitura! Milton agora enfrenta as consequêncis de sua descoberta, ou de sua loucura!
Leia a Parte 1 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Nada, Além de uma Cobaia
Como era de se esperar, foi tudo muito rápido. Não havia sido um segurança que derrubara Rubens, mas um outro homem, sujeito com cara de gringo e de terno alinhado, talvez fosse um segurança sim, mais acima na hierarquia dos seguranças por ali, mas fosse o que fosse, Milton queria que isso se danasse. Steinberg só sabia que o cara vinha com a arma de choque em punho, para o lado dele, passando por cima de Castilho, estatelado no chão. Milton recuava, aterrorizado.
Um celular tocou baixinho, em algum lugar por ali, uma musiquinha conhecida.
Ambos, Steinberg e o sujeito de terno, pararam e ergueram as mãos, as que não estavam ocupadas, em direção ao próprio corpo, instintivamente buscando sacar e atender seus smartphones.
Olhavam um na direção do outro. Na verdade o cara de terno, muito sério, nunca tirou os olhos de Milton, desde que entrou na enfermaria, e este último estava era olhando a perna de Rubens, deitado abaixo do homem de terno, que se encolheu até o joelho quase tocar o queixo do físico. O elegante recém chegado percebeu que Steinberg olhava mais para baixo, e fez questão de que o sujeito encurralado visse a arma sob seu paletó, tocando-a, exibindo-a, enquanto parecia que estava prestes a dizer algo. Foi neste instante que o Doutor Lewroy deu o coice mais forte de sua vida nos testículos de alguém. Os olhos do cara de terno quase pularam fora das órbitas. A arma, por alguma razão, saltou de sob o paletó, e o homem dentro do paletó despencou com estardalhaço sobre a maca onde Milton havia estado desacordado. Steinberg, por puro reflexo, tinha se esquivado com um pequeno salto lateral. Então a maca, o terno, e seu dono, ficaram todos embaralhados e imóveis no chão.
Milton pegou a arma que jazia caída, ali perto, enfiou a pistola em sua pasta à tiracolo junto com o fotômetro, e foi saindo daquela enfermaria, agarrando Rubens, levantando-o, e o arrastando consigo. Não trocaram palavra, nem encontraram resistência dos seguranças, apenas bufaram e praguejaram juntos, enquanto saíam da parte da estação férrea destinada aos funcionários, e, lição aprendida por Milton, que refreou o amigo quando este tentou disparar, caminharam rapidamente até desaparecerem na estação de metrô de superfície anexa. Foi só então que ambos sussurraram entre os dentes, começando por Steinberg:
— Eu já te disse, — havia impaciência em sua voz — um experimento internacional. Complicado de explicar assim. Deu errado, houve uma explosão, Iceberg, todo mundo já estava apagando as luzes quando você apareceu, e bateu de frente justo com a Alice!
— Quem é essa mulher? É gringa?
Rubens ainda estava tonto, e o metrô, também invariavelmente lotado, não ajudava. Enquanto tentava achar um lugar onde se agarrar, enquanto eram arrastados pelos transeuntes para dentro de uma composição que estava prestes a sair em direção ao Centro, o físico disse, seco:
— É. Gringa.
— Tem um português impecável.
Lewroy fez que sim. Estavam ele e Steinberg prensados contra a porta oposta àquela pela qual foram empurrados pela turba que invadiu aquele carro de metrô. Steinberg, subitamente, começou a sentir medo de que as pessoas comprimidas contra ele acabassem disparando a pistola dentro de sua pasta, e tentou levantar a bolsa, sem sucesso, acima da cabeça, enquanto dizia, ainda em um murmúrio feroz:
— Então! Esse experimento tem haver com o tempo? Fala, Cabeça, que merda, talvez nós estivéssemos mortos agora se aquele filho da puta entrasse atirando.
— Não, cara, eu não acho que ele queria te matar. Provavelmente ele queria você vivo, como…
— Como o quê? Cobaia?
O silêncio de Rubens deixou Steinberg sentindo um profundo terror. Ele baixou os olhos, exausto, a cabeça doendo terrivelmente, e disse mais para si mesmo:
— Eu senti. Senti mesmo que algo diferente tinha acontecido comigo, quando ví as ondulações na xícara, as pessoas sentiram, só eu vi.
Com a cabeça como que girando, Milton comprimiu os olhos, forte, tentando respirar fundo, apesar de comprimido entre as pessoas do jeito que estava.
Com um tranco, o metrô parou na estação seguinte, uma lufada de ar entrou, fresca, e Steinberg sentiu um pequeno alívio na pressão à sua volta. Ergueu os olhos.
Estava só.
Viu as porta se fecharem e ficou procurando seu amigo de infância lá fora, imaginando se ele, que já havia dito querer ir embora da cidade, teria saltado na estação, mas não viu ninguém. O metrô disparava rápido, e as últimas pessoas vistas pelo vidro da porta se tornavam quase borrões indistintos, então talvez Rubens tivesse passado bem defronte seus olhos, mas Milton não o reconheceu, talvez… Mas, talvez… Apenas talvez… Ele lembrou da bela Alice, e da Navalha de Occam.
Talvez estivesse ficando louco mesmo.
As estações chegavam e partiam, e Steinberg se sentia cada vez mais exausto, desesperançado. Não sabia onde estava, sabia apenas que estava sob os alicerces da cidade, do Centro, todos os milhares de escritórios, onde se fazia de conta que se era civilizado, um teatro de sombras esperando a escuridão final, tudo isso estava sobre ele agora, que era um minúsculo Atlas, e as estações continuavam a vir e ir, desimportantes.
É, pensava, talvez seja isso, talvez cada um de nós estivesse louco. Isso explicaria muita coisa. Seus dentes apareceram sob os lábios, ele sorriu amargamente.
Foi quando lhe surgiu aquela sensação de estar sendo observado. Levantou a cabeça e seus olhos encontraram os olhos de um homem que ele conhecia de algum lugar… Subitamente se lembrou, o sujeito que iria encontrar com a irmã perdida há vinte anos, e que não sabia chegar ao Centro do Rio, e lhe perguntou se ia na direção certa, um dia, no trem. O camarada estava um pouco distante na massa de gente, e fez um sinal de “o.k.” com o polegar, havia reconhecido Milton, que por sua vez abriu a boca para perguntar pela irmã do sujeito, mas de repente se sentiu oprimido novamente, e se calou. Foram essas coincidências que o deixaram insano, que o fizeram mergulhar nesta angustiante sensação de que o mundo em torno dele havia enlouquecido. O homem que estava olhando para Milton pôs uma das mãos ao lado da boca, em concha, e gritou:
— Obrigado, cara!
Com um sorriso desanimado, Steinberg gritou de volta, em meio ao burburinho da turba enlatada ali:
— Sua irmã? Encontrou?
— Irmã? Que irmã? Sou eu! Do trem, da prova! Olha, consegui fazer aquela prova, tá ligado? Valeu!
Antes do agradecimento final Milton já havia baixado a cabeça de novo, e comprimido os olhos, que lacrimejavam. Um torvelinho de horror girava em seu peito, ele estava com algum problema no cérebro. Só podia. Tudo o que lhe aconteceu foi fantasia. Precisava de um médico, um psiquiatra. Foi quando algo cutucou sua costela, pois uma senhora obesa, que tentava chegar perto da porta de saída, o espremeu mais do que já estava, comprimindo sua pasta tiracolo contra seu flanco.
A arma!
Com um solavanco, o metrô parou em mais um estação, enquanto o campeão de Tetris tentava alcançar a prova de que ele Não havia alucinado.
A arma era real! Quase acotovelando os outros, Miltou conseguiu abrir, com dificuldade a bolsa, mas acabou escancarando-a, tão ansioso estava por algo em que se agarrar para provar a si mesmo que não estava alucinando. Um sujeito alto e careca que estava ombro a ombro com Steinberg viu a pistola pular dentro da pasta, e o dono da pasta agarrar a coronha dela, então o homem calvo começou e empurrar outras pessoas, tentando se afastar, enquanto exclamava:
— Meu Deus, uma arma!
— Senhor!
As vozes se multiplicavam em torno de Milton. Pessoas assustadas se acotovelando e levantando a voz.
— Porra, tem um cara armado!
— Sai!
— Senhor! — Steinberg finalmente reparou que este “senhor” era com ele. — Senhor, solte a arma!
Era uma mulher que tentava se achegar à Milton. Ela vinha empurrando as pessoas o mais cuidadosamente que podia, mas vinha inexoravelmente em direção dele, com ares de poucos amigos e com um uniforme preto de segurança do metrô. Steinberg estava começando a detestar seguranças!
Ele ergueu a arma. Não estava louco! Olhando em volta nervosamente, percebeu que por alguma razão que não poderia ser coincidência, aquele vagão continha mais três seguranças de farda escura que vinham também em sua direção, cercando-o.
Um dos outros seguranças, homem, muito alto e largo como lutadores costumam ser, mantinha uma das mãos baixa, provavelmente já empunhando um cacetete ou coisa pior, enquanto já esticava a outra mão, em garra, na direção de Steinberg, e dizia com voz firme:
— Calma. Calma, amigo.
Milton sabia que iria parar em outra sala sem janelas, e desta vez é pouco provável que escapasse do gringo de terno. Apontou a arma, hora para um, hora para outro dos seguranças! A mulher, a primeira a vir em sua direção, agitou uma das mãos para os colegas pararem, e começou a falar para todos os passageiros:
— Todo mundo deita no chão. — Steinberg não pôde crer no que a segurança disse, e algumas pessoas, no meio daquele mar de gente prens, mas risos. ada, chegaram mesmo a rir. Risos nervosos, mas risos.
Apontando a arma para ela, Milton berrou, trêmulo:
— Você também! Todos vocês! Deitem no chão!
— Camarada… — Começou o segurança fortão, ao que Steinberg foi dizendo, com os olhos dardejando entre os seguranças e com a voz esganiçada de tão nervoso que ele estava:
— Escuta, porra. Eu só quero sair daqui. Essa arma não é minha. Deita na porra do chão, e eu não atiro em ninguém! E vocês primeiro! Os seguranças primeiro!
Todos os seguranças se abaixaram da melhor forma que conseguiram. O metrô havia parado em mais uma estação, e as portas se abriram.
— Agora os outros, os passageiros, por cima deles! Todo mundo se amontoando em cima dos seguranças! Vai! Vai! — Gritou Milton, sendo obedecido por todos, enquanto ele mesmo saltava do vagão e desatava a correr o mais rápido que conseguia.
Passou feito um meteoro pelas catracas, mantendo a pistola em punho mas oculta o melhor possível por sua pasta tiracolo. Subiu em disparada o passadiço curvo e ascendente da Estação Carioca, correu feito louco pela plataforma principal, em direção à saída do edifício Avenida Central, e escalou as escadas rolantes saltando de dois em dois degraus! Assim que saiu da estação do metrô, ele dobrou para esquerda, duas vezes, e, um pouco mais adiante, sem fôlego, parou e respirou fundo até se acalmar um pouco. Por alguma razão não havia ninguém perseguindo ele, devem ter visto que saiu da estação e deixaram o problema para que a polícia na rua se virasse com ele.
Sem perceber, ele havia dado uns poucos passos atrás, enquanto aspirava o ar ensolarado, vigiando se alguém o seguia, e, com uma olhadela para trás de si, para ver se não ia tropeçar em nada, se apoiou em um balcão de algum bar. Voltou a olhar em direção à saída do metrô, pronto para fugir se algum uniforme preto ou algum policial viesse em sua direção.
Foi então que um leve toque no braço o fez olhar para trás, agora mais ostensivamente, e ver a versão muito jovem e loira de dona Glória lhe passando uma fumegante xícara de café.
A Xícara, Novamente
Milton Steinberg se arrepiou todo, como se fosse a peça de porcelana uma víbora! Então ele olhou em torno, só percebendo naquele instante que estava na cafeteria, a mesma de ontem, de antes de ontem, de todos os dias! Olhou de novo para a xícara, pois logo a superfície do café vibraria, captando, com suas ondulações, a explosão distante, e tudo recomeçaria, de novo e de novo.
— O de sempre, senhor Milton. — Falou a atendente, sílaba a sílaba, do mesmo jeito, com o mesmo sorriso gentil.
Steinberg pegou a xícara como se ela fosse venenosa, e lembrou tarde demais que tinha uma arma nas mãos. Quando tentou aparar a xícara com a segunda mão, pois em sua mão trêmula o café ameaçava cair, Milton expôs a arma. A jovem atendente, consequentemente, viu a pistola na outra mão de Steinberg e foi recuando e repetindo sem parar:
— Ai meu Deus, ai meu Deus...
O homem armado arregalou os olhos, fitou a arma em sua mão como se a visse pela primeira vez, embora soubesse claramente como ela tinha ido parar lá, ele… Acreditava… Que havia tomado ela de um cara mal… Comprimiu e abriu os olhos, e com um movimento brusco da cabeça, relanceou em volta novamente, esticando a cara para fora da cafeteria, e foi então que ele viu homens uniformizados! Policiais, carcereiros! Encostados em uma viatura, não muito distantes dali, conversando soturnamente. Milton olhou de volta para a atendente, que, acuada, continuava rogando a Deus e a ele por misericórdia. Com um olhar de súplica, Milton apontou a pistola para a jovem, não para intimidá-la, mas, sem saber o que falar, sentindo-se imensamente envergonhado por assustar a moça. Mas ela entendeu como uma ameaça, se encolheu, se calando, chorando baixinho. Talvez, pensava Steinberg, suando e tremendo, seu cérebro chegando no limite diante de tudo aquilo, mesmo que ele atirasse nela, ela, no dia seguinte, voltaria, ou talvez a versão idosa dela. Milton sentia um nó na garganta, o peito oprimido, talvez tivesse que atirar, atirar em alguém… O sistema estava ali, em torno dele, novamente, novamente e novamente, cada parte agora eternamente corrupta do maldito sistema impelindo seu dedo no gatilho. Quantos Miltons o sistema matava por dia? Talvez fosse isso, tudo aquilo era para eliminá-lo, ele que parecia ser o único a saber que aquelas vinte e quatro horas eram sempre os mesmas. Talvez, de fato, a arma estivesse em suas mãos para Steinberg atirar em si mesmo, antes que fosse arrastado e trancado por toda a eternidade em uma cela (onde quer que ficasse, naquele dia eterno, jazeria para sempre).
— Nãããooo… — Murmurou ele, com o rosto contorcido de agonia. Suas lágrimas escorriam.
Na xícara, o café ondulou, rápida mas delicadamente, no mesmo instante em que Milton percebeu que seus carcereiros vinham correndo em sua direção, e em que ele foi levantando novamente a arma. Outros funcionários da cafeteria, vendo agora a pistola se erguendo, prestes a tirar a vida de alguém, começaram a fugir e gritar. A jovem do outro lado do balcão exibia as mãos espalmadas à frente de si mesma, que ela agitava no ar, como se estivesse negando algo, ou dando adeus à Milton. A boca da jovem, silenciosamente, repetia sem parar “não, não, não”…
E Milton Steinberg atirou. Duas vezes.
Mas não antes de se abaixar. A princípio ficou sem perceber claramente como a ideia lhe veio à cabeça, apenas pôs em prática, e no meio da ação entendeu o que estava fazendo, muito embora, em retrospecto, percebesse que foi, sim, premeditado. Estava lá, a ideia tão junta do agir, que ambas eram quase indistinguíveis.
Milton se abaixou rapidamente, antes que a pequena multidão de clientes e funcionários dispersasse. Os guardas, ele apostava, não tinham gravado sua fisionomia. Então, agachado, atirou para cima, torcendo para não ferir ninguém, e, ato contínuo, arremessou a arma numa reentrância por baixo do balcão. A princípio ele se estatelou no chão, como os outros faziam, por causa do terrível medo de balas perdidas que os moradores da dita cidade maravilhosa tinham, mas quando as pessoas perceberam que não haveria um terceiro tiro, e que começaram a se levantar e fugir, Milton fez o mesmo, mantendo as mãos se agitando no ar, vazias, como se ele fosse mais um transeunte em pânico.
Em um minuto estava andando a passos largos em direção à Cinelândia, e enquanto passava em frente ao que o povo da cidade chamava de uma decepção constante, e que as pessoas lá dentro chamavam de Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ele passou por uma moça bonita que, por um segundo, ele achou ser sua vizinha Rheny. Mas não, não era ela, era uma moça muito parecida, mas ruiva, gringa, até um tanto sardenta, que estendeu um smartphone na direção dele, mostrou-lhe uma credencial que ele não conseguiu ler, e fez um gesto amplo, sorrindo, e dizendo algo sobre a copa do mundo, perguntando coisas, como se fosse uma entrevista.
Milton ficou, por um instante, fascinado com a semelhança entre esta mulher estrangeira e a sua Rheny. Que… Coincidência desconcertante…
Com a gringa insistindo, e sem saber como responder melhor, ele fez que não, agitando cabeça e mãos. Deveria estar havendo uma copa do mundo no Brasil, sim, mas ele não tinha tempo para mais pão e circo. A repórter ruiva perseverou na tentativa de que ele a respondesse, e ele, então, apontou para o próprio rosto, sinalizando lágrimas imaginárias, com as pontas dos dedos riscando o rosto a partir de seus olhos para baixo, depois apontou para o Palácio Pedro Ernesto, a Câmara Municipal, e disse:
— Corrupção. Roubalheira. Traição à pátria. Todo o governo, política desmoralizada e falida! Sem alegria. — E, lembrando seu velho professor que havia caído em desgraça, arriscou: — We… We will only be happy in a country of graduates, not in a country of…
Milton não conseguiu atinar de como se dizia “chuteiras” em inglês, então tentou por um momento imitar com os dedos alguém chutando alguma coisa, e, sentindo-se ridículo e amargurado, desvencilhou-se da moça, que ainda tagarelava.
Steinberg se livrou dela e continuou a caminhar ligeiro, para longe dali, apressando o passo ainda mais quando se deu conta de quantos policiais rondavam naquela praça. A vigilância ferrenha devia ser por conta da própria Câmara Municipal, para evitar que a indignação do povo que ela deveria respeitar lhe rendesse umas pedradas. Seus ocupantes, que a profanavam por dentro diuturnamente com sua politicagem corrupta e amadora, acusavam sarcasticamente de vandalismo qualquer revolta popular que a atingisse por fora. Era agoniante para Milton pensar que aqueles inchados vermes lamurientos e devoradores das riquezas da cidade teriam um reinado eterno, e de agora para sempre nada mais poderia ser feito para arrancá-los de lá.
Mais à frente Steinberg se enfiou no primeiro ônibus que conseguiu achar. E enquanto a condução rodava, ele pensava na ruína em que sua vida havia se transformado. Seria preso. Preso eternamente. Isso se não virasse mesmo uma cobaia… Mordeu o lábio inferior até quase se ferir. Nada daquilo tinha que ser real, talvez tudo fosse alucinação. Não tinha certeza mais de nada, só de que o dia se repetia, essa era sua única, vasta, absoluta e sombria certeza.
Sentado em um dos bancos do ônibus, a cabeça apoiada no vidro da janela, seu olhar, úmido, cuja expressão foi mudando, de triste e desesperançado para raivoso e amargurado, subitamente ganhou foco.
Não, não, pensou ele, enxugando as lágrimas, essa não era sua única certeza. Milton tinha também a certeza de saber onde tudo aquilo começou, e onde os infindáveis dias repetidos… Ou sua loucura… Poderiam ter um fim.
Saltou do ônibus e tomou outro, começando a ir em direção à Urca.
Continua na próxima semana, não perca...
Leia a Parte 4, FINAL de "Sob o Olhar da Eternidade"
Comente aqui embaixo, participe! Milton está louco?
Meus profundos agradecimentos àqueles que me deram a honra de me ler até aqui! Vamos em frente, neste texto um tanto crítico, outro tanto irônico, onde Milton, uma pessoa tão comum e tão desalentada pela realidade crua quanto muitos de nós, mergulha em um mundo de paranóia, ciência, e conspirações, tentando encontrar a si mesmo dentro de um prisão que ele crê eterna!
Leia a Parte 1 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Qual a Probabilidade?
Milton comprou, à prestação, um fotômetro. O mais preciso que o Google conseguiu lhe indicar. Ajustou o aparelho, e começou, dia após dia… Ou melhor, nas repetições daquele dia, ele começou a tentar pegar o raio de luz que lhe cegava. Mas o Universo, como da hábito, não pretendia entregar seus segredos sem lutar, e as mesmas coincidências que o levavam a ser cegado pelo reflexo na cúpula de vidro agora o tiravam, diligentemente, do alvo.
— Você mora perto da minha casa, não? — Disse-lhe sua vizinha, subindo ao seu lado a escada rolante para a plataforma do trem, em Madureira, quando ele ia para o trabalho.
Era inacreditável, mas o fato de ele saber que o dia se repetia deveria estar causando flutuações mais intensas na realidade, pois lá estava, bem ao lado dele, a mulher que tanto o atraia, e que jamais havia percebido a existência de Milton, e agora não só estava a menos de um metro dele, mas também tomou a iniciativa de puxar assunto. Antes mesmo que ele pudesse responder, ela riu, sem jeito, e foi dizendo:
— Desculpe, não me entenda mal. Quero dizer… — Riu de novo, ainda mais sem graça. — Mas somos vizinhos, não somos?
— Você é muito lind… — Engolindo de volta o que tentou dizer em um ato falho, Milton engasgou ligeira mas visivelmente, tentando também consertar o dito: — Minha vizinha, sim, você é minha vizinha.
— Eu sabia! — Ela sorria. — Meu ônibus enguiçou, tive que pegar o trem. Não costumo fazer isso, mas como eu sei que você é um cara gentil, eu, meio louca, sei lá, perguntei antes de perceber que isso iria ficar estranho.
Milton comprou, à prestação, um fotômetro. O mais preciso que o Google conseguiu lhe indicar. Ajustou o aparelho, e começou, dia após dia… Ou melhor, nas repetições daquele dia, ele começou a tentar pegar o raio de luz que lhe cegava. Mas o Universo, como da hábito, não pretendia entregar seus segredos sem lutar, e as mesmas coincidências que o levavam a ser cegado pelo reflexo na cúpula de vidro agora o tiravam, diligentemente, do alvo.
— Você mora perto da minha casa, não? — Disse-lhe sua vizinha, subindo ao seu lado a escada rolante para a plataforma do trem, em Madureira, quando ele ia para o trabalho.
Era inacreditável, mas o fato de ele saber que o dia se repetia deveria estar causando flutuações mais intensas na realidade, pois lá estava, bem ao lado dele, a mulher que tanto o atraia, e que jamais havia percebido a existência de Milton, e agora não só estava a menos de um metro dele, mas também tomou a iniciativa de puxar assunto. Antes mesmo que ele pudesse responder, ela riu, sem jeito, e foi dizendo:
— Desculpe, não me entenda mal. Quero dizer… — Riu de novo, ainda mais sem graça. — Mas somos vizinhos, não somos?
— Você é muito lind… — Engolindo de volta o que tentou dizer em um ato falho, Milton engasgou ligeira mas visivelmente, tentando também consertar o dito: — Minha vizinha, sim, você é minha vizinha.
— Eu sabia! — Ela sorria. — Meu ônibus enguiçou, tive que pegar o trem. Não costumo fazer isso, mas como eu sei que você é um cara gentil, eu, meio louca, sei lá, perguntei antes de perceber que isso iria ficar estranho.
— Não ficou. Não, não ficou. Somos vizinhos, devemos nos conhecer. — A pasta tiracolo dele escorregou de seu ombro, e Milton a ajeitou. — Tudo anda tão louco, que é bom saber que pessoas conhecidas estão por perto… Ei, desculpe perguntar, mas como sabe que eu sou gentil?
— As pessoas falam. — Ela estava estonteante, arrumada para o trabalho, elegantemente e sutilmente sensual. Devia ser advogada, ou algo assim, ele pensava.
— Pessoas?
E dali em diante ficava fácil deduzir o por que fez ele não ter conseguido medir o reflexo luminoso, de novo. Na verdade ele nem lembrou do flash até chegar ao Centro do Rio. Sua vizinha, que se chamava Rheny Alencar Roussel, explicou a ele sobre como as senhoras da vizinhança, que gostavam dela pois todos os sábados Rheny jogava cartas com elas, haviam colocado Milton na lista de boas e más pessoas das redondezas, enquanto fofocavam inofensivamente entre si. Ele era uma das pessoas boas. Uma certa senhora do grupo, que Steinberg sempre achou que não gostava muito dele, o viu respondendo aos acenos de crianças dentro um ônibus que agitavam as mãozinhas nas janelas (quando acenam para você, é educado, ele achava, acenar de volta, especialmente quando se percebe a alegria inocente dos pequenos) em uma rua próxima, deixando-as risonhas e felizes.
Milton jamais imaginaria que ele pudesse estar em uma lista dessas, no lado das boas pessoas, e se sentiu feliz com aquilo. Tão feliz que, ao se despedir de Roussel, sem, no entanto, reunir coragem para pedir a ela um telefone ou algo assim, subitamente se deu conta de que havia esquecido de medir o reflexo luminoso!
Na tentativa seguinte, exatamente quando Milton levantava o fotômetro, um sujeito lhe disse que estava perdido, que precisava ir ao Centro mas que não sabia se estava indo na direção certa, pois era de fora do Rio, e estava ali para buscar uma irmã, que ele não via há quase vinte anos, e etc e tal, e pronto, lá se foi sua chance naquela manhã de medir o foco luminoso.
No dia posterior Steinberg estava tentando, dentro do vagão em movimento, acionar o aparelho de medição sem tirá-lo da bolsa, pois nos dias anteriores achou que os seguranças da linha férrea o estavam olhando torto, talvez estranhando que ele andasse apontando aquele aparelho para lá e para cá, enquanto o calibrava. Milton, portanto, passou a tirar o fotômetro só quando estava chegando perto do ponto onde a luz o atingia. Mas enquanto tentava acionar o aparelho que, por alguma razão misteriosa não queria ligar, ele foi abordado pelo pedinte ranzinza, que o cutucou com uma caneca, e disse:
— Qualquer dez centavos serve.
— Hein? Ah, sim. Eu não tenho.
— Você nunca tem.
Milton ficou olhando para o pedinte, um senhor de certa idade, sem saber o que dizer além de um xingamento, que, em verdade, ele preferia não dizer. Steinberg não era muito velho, mas era do tempo em que não se xingava tão levianamente quanto hoje em dia. Então, subitamente, o homem preso em um único dia se viu perguntando ao mais velho:
— Para quê o senhor quer dinheiro?
— Estudar.
— C-como? O que você disse?
— Isso que você ouviu, rapaz. Na verdade eu sempre explico, mas você é um daqueles muitos que não escutam, que não querem escutar, ou estendem a mão e deixam cair seus trocados aqui na caneca, — a peça de plástico se agitou e tilintou na mão dele — ou fingem que não me viram. Uns poucos me dizem um mais cortês não. Você sempre me diz não, mas pelo menos fala comigo.
— Me… Desculpe.
O velho deu de ombros e prosseguiu, animado em conversar:
— Lembra do cara que morava na rua e que estudou e passou para o concurso do Banco do Brasil?
— Ouvi falar…
— Pois é. Eu já fui professor, agora moro na rua, junto com outras pessoas em um buraco na estação de Madureira. Mas acho que posso sair dessa, seguindo o exemplo daquele homem, estudando.
— Professor? — Milton ficou com a impressão que conhecia o velho pedinte, e essa impressão deve ter transparecido em seu rosto, pois o outro foi dizendo:
— Sim, eu fui seu professor no ginásio. Eu nunca esqueço um rosto, eu acho que você era o… Rosemberg?
— Steinberg. Português? O senhor ensinava português?
— Estudos sociais.
— Como? Quero dizer, como isso aconteceu, professor?
— A profissão já não tem muito prestígio no país no futuro, sabe como é. O país das desgastadas chuteiras tem tudo para ser o país dos diplomas, mas não é. — Seu sorriso não desapareceu, mas seus olhos expressavam mágoa, quando completou: — E, cá entre nós, convenhamos, droga só pode chegar tão fácil na mão da gente com a conivência, ou coisa pior, dos governantes, certo?
Milton, agora, foi quem deu de ombros. Aquilo era uma coisa que todo mundo sabia, política e marginalidade no Brasil eram quase sempre a mesma coisa. Steinberg fez uma cara triste. Achava que lembrava, vagamente, do professor, e ele era um cara que ensinava legal, sempre risonho, parecia gostar muito de lecionar.
Steinberg se atrasou para o trabalho naquele dia. Ele e seu antigo mestre comeram juntos na mesma cafeteria que Milton sempre frequentava, e o professor viu a xícara de café vibrar e o líquido preto dentro dela se preencher de ondas concêntricas!
— O senhor viu isso? Viu só?
Ele tentou explicar ao idoso professor que aquilo acontecia diariamente, e não teve certeza se o cara entendeu que algo inusitado estava acontecendo. Depois disso Milton passou em uma livraria com seu antigo mestre, que sonhava em voltar a estudar, e quase estourou o que restava do limite do seu cartão de crédito, comprando apostilas e livros para o sujeito, cujo rosto se iluminou, ele tinha uma chance! Em uma LAN house, Steinberg fez um perfil no Facebook para o sem teto, anotou os dados em um dos livros que haviam comprado, e fez o cara prometer que, quando superasse aquela época difícil, após passar no concurso, iria fazer contato com ele. Milton sabia que isso não aconteceria, pois nunca mais haveria amanhã, mas, caramba, justamente por isso, dane-se! Deu algum dinheiro para o sujeito, e se despediu dele. O velho professor ficou tão feliz que Milton só lembrou do flash luminoso no dia seguinte.
Mais um dia e Steinberg estava, de novo, no vagão, e conseguiu, com algum esforço, chegar à exata posição onde, ele já estava cansado de saber, o raio de luz o atingia. Mas assim que chegou lá, tossiu. Um sujeito de terno e gravata, com aparência de executivo, parecia ter passado a noite anterior dentro de um grande tonel cheio de perfume! Se ao invés de cheiro o camarada estivesse exalando fogo, o trem inteiro teria explodido e estaria ardendo em chamas! Era quase insuportável, mas, desta vez, Milton estava decidido a não deixar nada, de jeito nenhum, impedir que ele fizesse a medição da luz. Fincou pé em sua posição e armou o fotômetro assim que o trem parou na estação logo antes de onde ele sabia que o raio luminoso costumava aparecer. Em cerca de dois minutos o flash espocaria da cúpula de vidro do templo religioso, mas não atingiria seus olhos, e sim o sensor do fotômetro.
Houve um certo tumulto, na estação em que o trem havia parado, um burburinho, algumas pessoas correndo, e Steinberg ouviu, em algum lugar, a palavra “assalto”, mas não houve uma explosão de gente em fuga, o que pareceu indicar que tudo havia passado. As portas da composição se fecharam, ele apertou o sensor luminoso na mão direita, enquanto a esquerda segurava firmemente a barra de metal acima dele, que servia para que as pessoas entulhadas ali dentro se mantivessem de pé, para caberem mais dos ditos dignos trabalhadores por metro cúbico.
Steinberg olhou furtivamente em volta de si, e não viu nenhuma pessoa conhecida, ergueu o aparelho, pondo ele em frente ao rosto e… Seu telefone tocou. Ele ignorou. Alguém dentro do vagão gritou alguma coisa. Ele ignorou.
A qualquer instante a luz iria espocar!
Mas antes disso, alguém esbarrou nele, se levantando de um dos assentos à frente, abarrotados de pessoas, como quem quer fugir, sair de perto dele, e Milton percebeu, de canto de olho e depois olhando diretamente, que dois seguranças, com bonés e coletes de cores berrantes, vinham em sua direção, olhando-o com raiva!
— Larga esse troço! — Um deles gritou, enquanto o outro levantava um cassetete.
Milton, que sabia o quão bem treinados eram esses tipos de profissionais no seu país, desatou a correr, claro. Ou melhor, tentou correr no engavetamento de gente que era o vagão balouçante de trem naquele momento da manhã.
Um agressivo estalo elétrico o fez perceber que alguém, certamente um dos seguranças, empunhara uma arma de choque, e instintivamente Steinberg começou a empurrar as pessoas, como o afogado que empurra a água tentando respirar! Em algum lugar seu celular tocava sem parar, ele nem se dava conta, enquanto lutava para escapar. Ele chegou ao fim do vagão e atravessou o acesso que havia entre as composições acotovelando quem estivesse pela frente. Milton chegou a levar um soco desengonçado de alguém, mas estava com a adrenalina tão alta, que mal sentiu o fraco golpe, enquanto ouvia os gritos cada vez mais selvagens dos dois seguranças, que praguejavam e xingavam Steinberg, as pessoas que atrapalhavam a perseguição, maldizendo tudo, até o mundo que era uma merda! Corriam aos tropeções, os três, enquanto as pessoas faziam o possível para sair do caminho, quando Milton bateu contra a parede no fim daquela composição, não havia acesso à próxima composição, não havia mais para onde ir. A não ser para fora! Então, empurrando as pessoas que, apavoradas, se contorciam para escapar, ele se esgueirou até a lateral onde estava a saída, agora fechada, segurou a borracha carcomida entre as duas abas da porta do vagão, enfiando ali os dedos e agarrando essas abas com os cotovelos apontados para os lados, e fez força para abrí-las. Forçou uma, duas vezes. Os seguranças cada vez mais próximos. Novamente Steinberg forçou as portas, que cederam, relutantemente no começo, mas se escancarando devido a má conservação no final! A ventania entrava, visto o trem estar em plena velocidade, e Milton parou no limiar da porta aberta, olhando o chão de brita correr abaixo. Virou o rosto, viu que o trem se aproximava de mais uma estação, logo iria desacelerar, se ao menos conseguisse atrasar os seguranças, pensou. E imediatamente se deu conta dos camelôs que pululavam entre os passageiros, sempre tentando vender seus produtos no meio daquele sufoco, pagando propina sempre para os seguranças da linha férrea, mas não raro perdendo tudo que tinham para os caras, quando estes resolviam fingir trabalho para seus superiores. Milton gritou:
— Meganha! Segura os meganhas! — Usando gíria que, em suas infindáveis viagens de trem, ouviu os camelôs usando.
Alguém, para sorte de Steinberg, perdeu o senso de perigo e resolveu agir, pondo uma perna bem no caminho do segurança que já estava quase alcançando Milton, e o cara desabou no chão, seguido do colega. A arma de choque deve ter disparado, pois ouviram-se gritos e estalos elétricos. No tumulto que se seguiu, o trem já estava quase parando na estação, e Steinberg desceu correndo, o fotômetro ainda na mão, esquecido. Girando no próprio eixo, ele percebeu que estava na estação ao lado da Quinta da Boa Vista! Poderia correr para o metrô, e desaparecer por lá. Subiu as escadarias correndo, e talvez tenha sido esse o seu erro ingênuo, pois assim que os seguranças que o perseguiram dentro do trem começaram a berrar (deveria haver um rádio quebrado em algum lugar, um monte deles para os seguranças, os quais a corrupção endêmica brasileira não deixava serem consertados nunca) outros seguranças vieram correndo de cima, e se atiraram sobre Milton, o único cara que parecia fugir, pois estava em disparada. Steinberg foi derrubado, rolando escada abaixo e batendo a cabeça.
Escuridão.
Pobre Homem Louco
Milton despertou numa espécia de enfermaria sem janelas. A porta estava aberta, ele pôde ver assim que se levantou da maca em que havia estado. E assim que ele fez isso, por esta porta entraram os dois seguranças que o haviam perseguido, seguidos de ninguém menos que Rubens, que foi dizendo:
— Foi bom ele acordar, significa que ninguém aqui vai se encrencar.
— Ele é que tá encrencado, chefia. — Disse um dos seguranças, cujo crachá Milton se esforçava mas ainda não conseguia ler.
— Ah, colega, quê isso?
E o Doutor Castilho se aproximou do segurança, despretencioso mas sério, e continuou, em um quase sussurro:
— Olha para o meu amigo. Ele está tendo uma crise, um atque de ansiedade. — e falando em um tom ainda mais baixo: — O pobre homem está louco, passando por muita coisa, não feriu ninguém além dele mesmo. Vamos esquecer isso tudo.
Milton, cuja cabeça latejava, conseguiu ouvir o murmúrio, e fez cara de quem não gostou, mas um instante depois sua expressão mudou. Estaria mesmo louco? Seria tudo aquilo imaginação dele? A certeza que tinha dentro de si, de que o mesmo dia se repetira eternamente, era pétrea, mas sua vida estava começando a ficar tão louca com aquilo, que a certeza de que ele próprio era uma pessoa sã já não era tão forte. Lembrou da Navalha de Occam, de Alice, e se calou, apenas observando enquanto Rubens conversava com os outros homens. O segurança com quem Lewroy iniciou a conversa, em certo momento, fez que sim com a cabeça, e disse:
— Está bem, doutor. Todo mundo tem seu dia de cão. É tanta sacanagem, violência e roubo que tá todo mundo com os nervos estourando.
— É mesmo. Tudo anda tão desanimador. — Concordou Rubens.
— É isso mesmo. A gente parece que tem acesso a mais informação, tipo pela Internet, mas fica sabendo que político tudo é bandido, que copa do mundo é tudo armação, que a vida podia ser bem melhor, mas se depender de quem manda, nunca será, que acaba ficando meio louco.
O outro segurança, mais calado, apenas balançou a cabeça, concordando. O primeiro segurança, mais falante, ficou um momento em silêncio, olhando para Milton, que ainda massageava a própria nuca, e então o sujeito disse:
— A gente também anda cansado. Confundimos ele com ladrão… Faz o seguinte, espera aqui que eu vou avisar a chefia e logo depois liberamos vocês, tá bem?
Lewroy abriu os braços e meneou a cabeça, dizendo simplesmente:
— Obrigado, caras.
Ambos os seguranças se foram.
Milton, constrangido, inseguro quanto a sua própria sanidade, já ia agradecer à Rubens, e perguntar como ele o encontrou, quando Lewroy o agarrou pelos ombros, o fitou olho no olho, a menos de um palmo de distância do seu rosto, e disse, num sussurro, quase selvagem:
— Milton! Escuta, cara! Alice, ela sabe de alguma coisa sobre um projeto que eu e ela participamos, e que eu não sei. Tem haver com o que você apareceu lá no meu trabalho.
— Q-que projeto?
— Uma iniciativa internacional, um experimento prático, que foi levado a cabo há alguns dias. Não interessa, só me escuta: fica longe, muito longe da Urca e da Alice, está bem? Acho que é perigoso, cara, eu tô dando um tempo, vou sair do Rio.
— Como você me achou?
— O Clinton é um amigo meu, Federal. Seu celular. Agora levanta, vem, nem vamos esperar os seguranças, não podem nos manter em cárcere, é ilegal. Vamos, eu te ajudo. Ah, toma isso, estava contigo e eles me devolveram, eu expliquei que é inofensivo, apenas um fotômetro.
Se pondo de pé, e pegando o aparelho das mãos do amigo, Steinberg fez um sinal de que podia andar sozinho, quando o outro tentou apoiá-lo. Apanhou também sua pasta tiracolo, que estava nos pés da maca, a pôs no ombro, e seguiu Rubens, que saiu na frente, mas assim que o físico pôs um pé fora da claustrofóbica enfermaria, este levou a descarga de uma arma de choque, Milton viu o clarão e ouviu o som inconfundível!
Enquanto seu amigo físico desabava no chão, os olhos de Steinberg se arregalavam! Estava encurralado!
Continua na próxima semana, não perca...
Leia a Parte 3 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Comente, participe! Milton está louco?
Caríssimos leitores, segue a primeira parte de um novo texto. Como faço habitualmente com as histórias aqui publicadas, será uma parte por semana, até o final (este não é um texto de degustação, será publicado na íntegra). Neste conto, um tanto crítico, outro tanto irônico, um cara comum mergulha em um mundo de paranóia, ciência, e conspirações, tentando encontrar a si mesmo dentro de um prisão que ele crê eterna!
Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"
A Xícara
Novamente, novamente e novamente. Todo dia era — quase, havia os quanta — tudo sempre igual. Quando a moça loira (antes havia sido morena, ou um rapaz, ou ainda uma senhora adorável cor de avelã, mas a entrega era sempre a mesma) lhe entregou, escorregando por sobre o balcão, a xícara de porcelana cheia de fumegante e cheiroso café, puro, preto, Milton Steinberg se arrepiou todo, como se fosse a peça de porcelana uma víbora! Então ele olhou em torno, só percebendo naquele instante que estava na cafeteria, a mesma de ontem, de antes de ontem, de todos os dias! Olhou de novo para a xícara, pois logo a superfície do café vibraria, captando, com suas ondulações, a explosão distante, e tudo recomeçaria, de novo e de novo.
— O de sempre, senhor Milton. — Falou a atendente, com seu sorriso claro e sardento, como se o conhecesse há anos, como se fosse ela mesma que lhe entregasse aquela mesma xícara (seria a mesma? Átomo a átomo?) toda manhã.
Sua mão trêmula pegou a xícara por cima, como quem pega um pote de alguma coisa perigosa. Foi neste instante que a jovem atendente viu a pistola na outra mão de Steinberg e foi recuando, dizendo:
— Ai meu Deus, ai meu Deus...
O homem armado arregalou os olhos, fitou a arma em sua outra mão, como se a visse pela primeira vez, embora soubesse claramente como ela tinha ido parar lá. Depois, com um movimento brusco da cabeça, relanceou em volta novamente, esticando a cara para fora da cafeteria, e foi então que ele viu homens uniformizados! Policiais, carcereiros! Encostados em uma viatura, não muito distantes dali, conversando soturnamente. Milton olhou de volta para a atendente, que, acuada, continuava rogando a Deus e a ele por misericórdia. Com um olhar de súplica, Milton apontou a pistola para a jovem, que se encolheu, mas se calou, chorando baixinho. Talvez, pensava o homem, suando e tremendo, mesmo que atirasse nela, ela, no dia seguinte, voltaria, ou talvez a versão idosa dela. Steinberg sentia um nó na garganta, o peito oprimido, talvez tivesse que atirar, o sistema estava ali, em torno dele, novamente, novamente e novamente, cada parte agora eternamente corrupta do sistema impelindo seu dedo no gatilho, talvez para atirar em si mesmo, antes que fosse arrastado e trancado por toda a eternidade em uma cela (onde quer que ficasse, naquele dia eterno, jazeria para sempre). Sem saber o que fazer, ele baixou um pouco o punho armado, percebendo que aquilo era inútil, terrivelmente consciente de que o dia, novamente, novamente e novamente, o levou até aquela xícara, ele chorou, agoniado.
Frente de Onda e Déjà Vu
A vida cotidiana é o veneno que se encarrega de envelhecer e enfim matar as pessoas. Ao menos Milton Steinberg pensava assim, quando, pela terceira vez naquela semana, despertou de mau humor, comeu alguma coisa, se banhou e vestiu, pegou a pasta tiracolo, pendurou no ombro, e saiu para trabalhar, às seis, como de costume. Brasileiro invulgar, não tinha a faculdade comum aos seus compatriotas de rirem no caos, e certamente devia ser julgado extremamente mal por isso, cercado de gente que ria enquanto era tratada como escrava por seus servidores públicos, administradores e pela comunidade economicamente dominante, de um modo geral. Não que Milton não sorrisse. Sorria quando via um azul perfeito no céu, ou algum raro ato de bravura ou bondade na rua. Mas em geral apenas enxergava pessoas fingindo que o que elas estavam fazendo tinha alguma relevância. Não tinha. Filósofo de quinta categoria, Milton sabia que sob o ponto de vista da eternidade, nada era perene, tudo se dissolveria no tempo e no espaço, ninguém seria lembrado por absolutamente nada do que fez, as pessoas mais famosas da mídia ou da história um dia, mesmo que levasse cem mil anos, seriam completamente esquecidas, e nada do que foi feito teria valor em si, a não ser como uma infindável corrente de repetição, nascer, viver, morrer para outros nascerem, viverem e morrerem depois.
Certamente essa linha de raciocínio foi uma das precondições causadoras do que estava por vir. Ela o assaltava vez em quando, especialmente quando seguia para o trabalho na lata de conserva superlotada que as pessoas chamavam de trem, indo de Madureira para o Centro do Rio de Janeiro, e ainda mais especialmente quando seus olhos captavam algo estranhamente fugidio, um dos diversos pequenos eventos repetitivos que preenchem as vidas das pessoas, como por exemplo um lampejo de luz na cúpula de vidro de um templo religioso qualquer, que teimava em fulgir justo nos seus olhos, quando passava por ali de trem.
Naquele dia o evento se repetiu justamente quanto Steinberg matutava sobre sua filosofia barata e desanimadora (ao menos ele pensava assim), sobre o fato incontestável de que um amontoado de gente era enlatada diariamente em um ir e vir de horas, somente para que seus filhos e netos fizessem a mesma coisa, eternamente e indignamente.
Quando o raio de luz o cegou, Milton piscou e imediatamente resmungou e praguejou entre os dentes. Sempre que aquele reflexo, que não dava a mínima para existência do sujeito, lhe cegava, ele pensava que no dia seguinte estaria em outro vagão, e que não se esqueceria de pegar sua condução voltado para o lado contrário de onde vinha o reflexo. E algumas vezes cumpria mesmo o intento, mas em algum momento esquecia, ou fatos como pessoas empesteadas de perfumes, ou com rádios altos, ou mesmo um pedinte que teimava em lhe pedir o dinheiro que não tinha e o encarar de forma rancorosa quando recebia um “não”, todos esses pequenos eventos, comuns, o conduziam, como o dançarino conduz a dançarina, reposicionando-o e girando-o, um pouquinho aqui, outro tanto ali, e zap! O reflexo o pegava de novo, bem nos olhos, o relâmpago cegante! Não acontecendo todos os dias, claro, mas acontecendo muitas vezes ao ano. Como era possível? Haveria algum destino? Não, não conseguia conceber um mundo-prisão onde você só existe nele para compor um quadro já pintado, sem chance de ser outra coisa além daquilo, tão pouco, que era. A bem da verdade Steinberg talvez tivesse mais medo daquela possibilidade do que argumentos razoáveis contra a veracidade dela.
Zap! Imprecações, verborragia murmurada, tinha sido pego novamente, novamente e novamente por aquele flash de luz refletida na cúpula de vidro do templo. E por causa do pedinte, de novo, que por sua vez só entrou no mesmo vagão que ele por conta de ele ter ajudado outra pessoa perdida a achar seu caminho ao parar para dar uma informação e perder seu ônibus das seis e quinze que o levaria até a estação de trem, e, provavelmente ele só teve que parar para dar informação por ter feito um caminho mais longo para se desviar daquela mulher que morava na rua ao lado e que se achava a garota mais bonita do mundo e para o ego da qual ele não queria dar alimento a custa dela perceber que ele a achava mesmo muito bonita, enfim… E foi aqui que o cerne da ideia surgiu… Essas coisas se repetiam, não todos os dias, ele sabia, lia sobre essas coisas, sabia da incerteza quântica e etc, que alguns diziam nada ter haver com o mundo macroscópico em que vivemos, e se restringir ao nível atômico, mas ele duvidava muito disso, as incertezas é que mantinham os dias ligeiramente diferentes uns dos outros, pensava ele. Qualquer dia iria perguntar sobre esta sua teoria ao seu amigo físico, Rubens Castilho Lewroy, o velho Binho Cranião, Lewroy Cabeção, gênio do colégio e que trabalhava agora na Urca, naquele laboratório do governo. Iria sim, perguntar a ele. Um dia.
Desceu do trem, na Central do Brasil, aquele monumento ao fato de que se trabalho dignificasse, aquele lugar naturalmente transpiraria dignidade, e não ruína política e social. Milton evitou uns menores provavelmente embebidos em crack e mal intencionados, driblou um camelô vociferante vendendo guarda-chuvas abertamente e celulares roubados mais discretamente, esquivou-se de motoristas que achavam que, nos sinais de trânsito, os pedestres é que deveriam dar passagem aos carros, e, enfim, descobriu que o ônibus que costumava pegar para o último trecho da viagem já havia partido antes do horário, então ele voltou à Central e, soterrando-se em outro transporte público, caiu no metrô que o esmagou novamente e o regurgitou na estação Carioca, de onde Milton emergiu como quem vê pela primeira vez, depois de décadas de trevas, os raios do Sol. Desanimado, pediu um café na cafeteria da esquina. Dona Glória (estava escrito no crachá dela), a atendente, com sua pele castanha e seu sorriso branco, lhe entregou o café preto e fumegante. O homem sorriu gentilmente para a graciosa senhora, em agradecimento, ajeitou a pasta tiracolo no ombro para poder pegar a xícara, olhou para a xícara, e parou de sorrir.
Sobre a superfície de ébano líquido do café, ondas concêntricas se formaram, mas não no centro da xícara, e sim espalhando-se, da área voltada para Steinberg em direção ao lado oposto, ligeiramente mais distante do peito do homem.
Nada demais, a vibração de um ônibus ou dos trens subterrâneos, se não fosse o fato de que duas outras coisas desconcertantes aconteceram neste mesmo instante: primeiro Milton sentiu sua carne vibrar a partir de suas costas até seu peito, como se o que empurrou a superfície do café tivesse passado por dentro dele próprio; e segundo, Steinberg teve a clara certeza de que tudo aquilo que estava vivendo já havia acontecido antes. Não a sensação vaga de um déjà vu, mas a certeza factual de que tudo estava se repetindo, não a mera e massacrante rotina cotidiana, mas de fato, de verdade, ele estava preso, horrivelmente preso, em um mesmo dia que, com algumas variações, era eternamente o mesmo. Não sabia como sabia daquilo, apenas sabia, como sabia seu próprio nome ou o que era uma xícara.
À volta de Steinberg as pessoas pareciam vagamente incomodadas. Sim, muitas pareciam desconcertadas, ele achava, mas rapidamente voltaram aos seus afazeres. Elas haviam tido um déjà vu, mas Milton havia sido o único, por alguma razão incompreensível para ele, que sabia o fato de aquele ser o único dia que existiria para sempre.
Olhou para trás de si. Ponderou. Sacou o celular para avisar que não iria trabalhar, e logo depois era engolido pelo metrô novamente. Era hora de conversar com o Rubens.
A Navalha de Occam
Milton teve que apelar para o Google Maps, mas finalmente estava de frente para o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, na Urca.
— Fala Cabeça. — Disse Milton ao celular, da portaria do prédio até modesto, perto de outras instalações dedicadas à ciência mundo afora. Se comparado aos centros de estudos em física de países desenvolvidos, o tamanho do brasileiro era inversamente proporcional à corrupção que assolava o país verde e amarelo de Steinberg. Ainda assim era um prédio, com direito a portaria e guarda dizendo que você só entra se um dos doutores liberar.
— Milton? Cara, que maneiro! Milton Iceberg, o jogador de Tetris mais frio e calculista do Universo! — Respondeu pelo celular o Mestre em Física Aplicada Rubens Castilho Lewroy. — Cara, você e sua intuição para padrões me fizeram seguir carreira científica, sabia? Como está, cara? Deve fazer um ano que não te vejo, e você raramente aparece no Face.
— Estou aqui em frente ao prédio onde você trabalha, Rubens, e preciso muito falar contigo, agora.
— Que voz é essa, rapaz? Ok, ok, vai pra portaria…
— Tô nela, Cabeça.
— ...Então espera que vou ligar te liberando, e o guarda vai te indicar como chegar na minha sala.
— Fala sério, Iceberg! Só você mesmo para tentar me pregar uma peça no meu trabalho! Um dia eterno que varia por causa dos quanta? Isso é, no mínimo, contraditório!
O Doutor Lewroy havia convidado o amigo para um café. Estavam ambos sentados na sala do físico, um em cada ponta de um sofá que ficava em um canto do cômodo, abaixo de uma janela. Lewroy a havia posto lá para poder ler com a luz do dia. Gostava de ler artigos, teses, textos científicos e quadrinhos naquele velho e confortável sofá de quatro lugares. Automaticamente Castilho foi se sentar onde estava acostumado a ficar, no canto longe da porta de entrada do escritório, e seu amigo ansioso ficou na ponta logo ao lado desta porta.
— Rubens. É sério. — Retrucou Steinberg. — Alguma coisa aconteceu… Acontece, toda a manhã, que faz o dia ser o mesmo!
O físico ficou olhando o amigo por um momento, muito sério. Então riu e disse:
— Prova.
— Eu… Não sei como provar.
— Então, cara, isso é coisa da tua cabeça. Fim.
— Não! — Disse Milton erguendo a mão espalmada. — Eu sei, como sei que esta aqui é minha mão. Eu vim falar contigo justamente para você, que sempre foi o mais genial, me dizer o que é isso.
— Alguma falha cognitiva, Iceberg. — e Rubens escancarou seu sorriso mais carioca — O teu cérebro encasquetou em fixar um circuito neuronal que fica dizendo o tempo todo para você que está no mesmo dia. Algo haver com a parte do teu cérebro que lida com o tempo.
— Faz sentido, mas… — E sem se dar conta, automaticamente, Milton ergueu o braço e abriu a porta ao lado. Uma mulher, jovem, estava parada logo em frente à porta, a mão se recolhendo lentamente, era perceptível que ela ia bater quando a porta se abriu, o que a surpreendeu um pouco.
— Oi, Alice. O pendrive com os cálculos está ali, na mesa. — o físico foi falando para a moça. — Milton, esta é a Doutora Alice Moretti.
— Olá, Doutora. Você vem aqui diariamente pegar cálculos ou coisa assim com esse cara, não é?
A moça, séria, olhou de um homem para o outro, e enfim respondeu:
— Sim. Quem é o senhor?
— Desculpe. Sou Milton Steinberg, amigo de infância do Doutor Rubens. — E, voltando-se para o outro homem, Milton foi dizendo: — Eu sabia. Eu sabia que ela estava na porta, pois eu sei que o dia está se repetindo!
— O quê?
— Ele acha que o Universo está preso num loop temporal, Doutora. Olha, Ice… Steinberg, meu amigo, Alice vem sim pegar diariamente resultados de cálculos comigo, e certamente, cara, você a ouviu, mesmo que no limitar da sua audição, chegando na porta que estava bem ao seu lado...
— Você está afirmando — Disse a moça — Que este cara, do nada, veio aqui falar contigo sobre um looping de tempo, desses de filmes da sessão da tarde na TV?
— Eu vim tentar entender o por que de eu saber, com a mais absoluta certeza, que estou vivendo… Nós todos estamos vivendo um mesmo e único dia, num ciclo sem fim.
— Às vezes as coisas se repetem, mas… — Principiou Alice, no entanto seu colega Rubens foi emendando:
— Ele argumenta que as diferenças são por conta do Princípio da Incerteza. — E, mediante um olhar atônito da mulher, o Doutor Castilho deu de ombros.
— E o senhor é formado em quê? — Quis saber a mulher.
— Tetris. — Brincou Milton, com um sorriso desanimado, e já imaginando que foi perda de tempo ir até ali. Alice, por sua vez, finalmente sorriu, e disse:
— Duvido que jogue melhor que eu. Mas tudo bem, se o senhor tem algum dado que prove sua percepção, vamos achá-lo. Se não, vamos encontrar o argumento lógico que te faça compreender que o problema está em seu cérebro, e não no Universo.
E, com certa graça, rara naqueles dias, a moça se sentou no canto do sofá em que Rubens costumava se sentar. Ambos os homens, claro, haviam se levantado quando ela entrou. E ambos os homens se sentaram logo que ela se sentou, Milton no meio e Rubens na outra ponta.
— Alice?
— Doutor Rubens. — Disse Alice, calmamente, em resposta ao colega. — Seu amigo está, obviamente, angustiado com o que está sentindo. Não temos nenhum compromisso urgente agora. A bem da verdade nem os nossos governantes e empregadores entendem a ciência como algo urgente neste país, então porque não ajudar seu amigo? Muitas vezes quando estamos assim, um simples papo já nos tira do fundo do poço.
— Obrigado, Alice. Posso chamar você de Alice? — Quis saber Steinberg, em um tom educado.
— Sem problemas, Milton. Agora vamos lá, se você não tem formação física, preciso te perguntar se entende os conceitos básicos envolvidos. Você entende?
— Gosto de ler um pouco de tudo, com certeza eu não sei tudo que deveria saber. Mas sei o que sei. Só vamos ter este dia, para sempre. — Respondeu Steinberg, quase soltando um suspiro desalentado no final.
— Obrigada por responder, Milton. Eu fiquei preocupada, sinceramente, que você achasse que era algum tipo de arrogância minha perguntar sobre o que sabe e o que deixa de saber, mas é preciso. Você está familiarizado e compreende o conceito de espaço-tempo?
— Sim. Einstein comprovou matematicamente que é mais produtivo pensar que espaço e tempo são a mesma coisa, e até hoje todos os experimentos indicam que ele deve ter razão. É isso?
— Em linhas gerais, sim. Então você diz que o espaço-tempo está curvo?
— Não tenho como afirmar, mas creio que sim, se espaço e tempo são a mesma coisa, então se o tempo se repete, o espaço tem que se curvar também, em círculo, acho.
— Mas, veja, Milton, você afirma que estamos em looping, ou, nas suas palavras, em um dia que se repete eternamente, daí o espaço-tempo tem que ter agora a forma de um círculo, sim, ou em outros termos, a forma de um toro. Feito um pneu, entende? Me acompanha? Ótimo. Então, com esse espaço-tempo em forma de toro, partimos de um ponto qualquer na superfície desse anel volumoso, e chegamos sempre a este mesmo ponto, podemos rodar pela superfície do anel mil vezes, mas sempre paramos no mesmo instante…
— A xícara! Eu sei, toda a manhã a Glória me passa o café preto, por cima do balcão, e é ali que eu atinjo o ponto em que comecei a rodar pelo anel de espaço-tempo.
Alice e Rubens se entreolham, ele com expressão de quem vê algo cair e se quebrar, ela com o rosto impassível. Milton, então, em um resumo breve, mas sem deixar nada importante de fora (exceção feita à tal garota, sua vizinha, que se achava linda, e que de fato era. Desta, Steinberg não falou nada) sobre seu dia eterno, que, hoje ele notou novamente, começava quando ele era transpassado por uma misteriosa força que gerava ondas no seu café preto.
— Interessante, Milton. — Alice falou, sorrindo mais uma vez. — Mas voltando ao ponto, se estamos presos em um anel de espaço-tempo, dia após dia fazendo as mesmas coisas, com pequenas variações por conta de flutuações quânticas, então no que isso difere de um dia normal em nossa atual cultura baseada em capital e trabalho?
Steinberg ficou olhando desconsoladamente para ela, sem saber, assim de súbito, o que responder. A cientista, então, prosseguiu:
— Pode-se dizer que nós sejamos privilegiados, eu e o Doutor Rubens aqui, pois fazemos algo que gostamos, e possuímos o status de pertencermos a uma elite intelectual. Mas em termos gerais, sofremos tanto quanto outros proletariados, que trabalham por um salário, as mesmas mazelas de nossa cultura, nossos dias são infindáveis repetições onde trocamos o tempo de nossas vidas por salários, para que os donos do dinheiro possam usar este tempo para viverem com a liberdade que não temos.
— Onde está o argumento físico?… — Foi perguntando Rubens, ao que Alice o olhou, séria, e ele se calou, para que ela continuasse:
— A percepção, consciente ou não, de que nossas vidas carecem de uma liberdade que, talvez, desse sentido à nossa existência, é uma fonte de tremendo estresse. Sabemos que enquanto uma elite pode usufruir a vida, o belo, e ter tempo para filosofar e de fato usar a mente, sem amarras, para sondar o mundo, nós temos que estar no trabalho das nove até a hora que a chefia achar conveniente. E, depois de uns anos disso, morremos sem deixar vestígio. Isso, se não for disfarçado com botequins, cerveja, futebol, telenovelas, jogatinas, cigarros ou outros escapes mentais, é de enlouquecer qualquer pessoa insensata o suficiente para ficar pensando sobre isso.
A mulher se inclinou ligeiramente para frente e pousou a mão sobre a de Steinberg, como quem o compreende e deseja confortá-lo.
— É isso que está te esmagando, caro Milton, a ponto de sua mente buscar desesperadamente um saída. Sua tese até tem um certo sentido, mas se há flutuação quântica, então, na prática, — ela se inclinou um pouco mais, olhando Milton bem nos olhos. Não chegava a ser uma cena de beijo, mas Steinberg estava pondo em dúvida se a sua vizinha era mesmo a mulher mais atraente que ele conhecia, quando a Doutora Alice completou: — tanto faz.
Ela ficou encarando o homem por mais um momento, tempo o suficiente para ele perceber linhas sutis em torno dos olhos dela, que denotavam ser a mulher mais madura do que ele pensou, à princípio. Então sua vizinha perdeu, em definitivo, o posto. Ainda assim Steinberg não era do tipo que se deixava abater tão fácil por charme e inteligência, e retrucou:
— Isso não quer dizer que eu não esteja certo.
— Navalha de Occam? Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem. Conhece?
— Sim. — Respondeu, em tom conformado, o homem. — Quer dizer, não, não em latim, mas sei o que é. A explicação para os fenômenos será sempre a mais simples.
— Muito bem. E o que é mais simples? Uma força misteriosa que faz o tempo se comportar exatamente como ele se comporta normalmente, ou sua mente, desgastada pelo estresse urbano e social, lhe pregando peças?
Milton Steinberg não sabia se sentia alívio ou não. Mas depois de trocar mais algumas palavras, inclusive de agradecimento, sem falar em e-mails e perfis em redes sociais, o jogador de Tetris apertou as mãos de ambos os doutores, e foi saindo. Enquanto esperava, solitário, um elevador, matutava sobre tudo aquilo.
Será que Occam estava certo sempre? E será que tanto fazia mesmo a forma como o espaço-tempo se comportava? A luz, indicadora de que o elevador acabara de chegar, se acendeu, mas o elevador desceu sozinho. Milton lembrou de seu raio de luz, que refletia em seus olhos quase diariamente, e pensou em medí-lo, se a intensidade fosse exatamente a mesma, não importando a hora da manhã em que ele o cegava, então, metaforicamente, era como se o elevador estivesse mesmo preso entre o térreo e o segundo andar.
Parou em frente a porta do escritório do Lewroy Cabeção e ergueu a mão para bater, quando percebeu que aquele era o momento padrão em que, nas histórias de cinema, ele ouviria algum segredo dos amigos que ainda estavam ali. Apurou os ouvidos e fez cara de divertido muxoxo ao escutar Rubens cochichando um deboche sobre ele: “flutuações quânticas, veja só o nosso campeão de videogames”.
Mas Steinberg fechou a cara quando ouviu a voz de Alice responder, em inglês e no mesmo tom baixo: “are not quanta, waves propagate in four dimensions, and more”.
Um momento depois a porta era aberta por dentro, por Alice, que saía, muito séria, mas Milton já havia ido embora.
Continua na próxima semana, não perca...
Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Agora é sua vez! Influencie no desenrolar desta história, deixe seu comentário aqui embaixo (onde está escrito "Comente, participe"), dizendo se você acha que Milton é louco, ou está mesmo preso em um mesmo dia:
Mais um trabalho original para vocês, caros leitores. Este é um roteiro para um scifi televisivo, com toques de suspense e terror, e ainda guarda parte da formatação original em que um roteiro é escrito, que difere em muito de textos romanceados. Repare por exemplo que as falas não tem travessão, mas são antecedidas pelo nome do personagem que fala. Espero que vocês se divirtam, e, quem sabe deixem suas imaginações fluirem de tal maneira que lendo este roteiro, se vejam investigando a miteriosa nave desgarrada junto com os protagonistas, e tomem um ou dois sustos... ;-)
Roteiro Original de: Wagner RMS & Flávio Langoni.
(*) Aqueronte: Filho de Hélios e de Gaia, foi transformado em rio e precipitado nos infernos como punição para uma antiga falha; tinha fornecido água aos Gigantes quando estes lutavam contra Zeus (Júpiter). Suas águas são amargas, lodosas e burbulhantes. Transportados pela barca de Caronte (Queronte, Caron, Charonte, Charon), os mortos devem atravessar este rio para atingirem a morada definitiva. Também chamado de rio Styx.
Canto III - A Divina Comédia - O rio Aqueronte:
Por mim se vai à cidade dolente, Por mim se vai à eterna dor, Por mim se vai à perdida gente. Justiça moveu o meu alto criador, Que me fez com o divino poder, O saber supremo e o primeiro amor. Antes de mim coisa alguma foi criada Exceto coisas eternas, e eterno eu duro. Deixai toda esperança, vós que entrais!
TITLE CARD:
"PARTE I
GÊNESE: NAVEGANDO EM AQUERON
O INÍCIO DO SÉCULO 22"
O VAZIO ENTRE OS PLANETAS, ONDE UMA ESFERA BERNAL, HABITÁCULO DE AÇO, GIRA LEVANDO EM SEU INTERIOR CIENTISTAS E HOMENS DE FÉ, QUE QUEREM ATINGIR O CAMINHO ENTRE OS MUNDOS.
No casco, por enquanto polido, da esfera, lemos uma série de traduções, para várias línguas, da palavra “Fé”. Terminamos confrontando a palavra em português. Então nos afastamos e vemos o todo, e a esfera gira, lentamente, enquanto sua superfície reflete tanto a luz do sol mais próximo, quanto a suave radiância das estrelas distantes. Uma série de torretas alinhadas em sua linha do equador parece incandescer lentamente, enquanto vozes no rádio conversam com uma distante e oculta base:
ESFERA:
“Estão nos ouvindo? O sistema de criptografia online está funcionando bem? Essa é a comunicação número seis. Depois dos dois meses de silêncio de rádio, estamos prontos e vamos abrir os portões agora. O núcleo sofreu ondulações, mas está operacional, e as torres de dissipação de campo estão se aquecendo, a qualquer momento o rajada de plasma-quantum deve abrir o canal de contato entre as branas.”
BASE DE OPERAÇÕES DO PROJETO AQUERON – GUIANA FRANCESA:
“O sistema está permitindo comunicação indistinguível do ruído de fundo do espaço. Mas aqui o decodificador está funcionando muito bem, recebemos sua transmissão de número seis claramente. Desejamos boa sorte, que vocês encontrem A Verdade...”
As torretas estão acesas, e um campo de distorção se forma em torno do equador da esfera, e se expande, cobrindo lentamente a superfície da esfera...
ESFERA:
“Amém. Muito bem, o campo se formou e está estáv... E a qual... Disparo de plasma... Devem estar ocorrendo distorções... Rádio... Todos estamos muito felizes!”
As torretas subitamente explodem, em sequência, silenciosamente, e o campo que cobria a esfera vai escurecendo, até que se percebe que a esfera desaparece lentamente.
BASE DE OPERAÇÕES DO PROJETO AQUERON – GUIANA FRANCESA:
TITLE CARD:
"PARTE II
O VAZIO: ENTRE A TERRA E A LUA
PRÓXIMO AO FIM DO SÉCULO 22"
VISTA DO ESPAÇO, EM PANORÂMICA, MOSTRANDO A LUA EM PRIMEIRO PLANO, E À DISTÂNCIA, O PLANETA TERRA.
Pode-se observar estrelas fulgurantes que se movem de cá para lá, que nada mais são que o rastro de poderosos foguetes das naves em tráfego entre a Terra e seu satélite. Vozes no rádio parecem entretidas em monótonos diálogos, controlando o ir e vir de naves. Subitamente, vinda da noite eterna, uma forma sombria e esférica começa a eclipsar a lua, e as vozes no rádio se exaltam:
CONTROLE DE VOO WELLS VILLAGE – LUA:
“Aqui é o Controle de Tráfego da base lunar Wells Village. Temos um estranho no radar. Tem algum veículo de carga a zero-sete-zero da elíptica que não se identificou?”
CARGUEIRO LANÇADOR MAGNÉTICO VESTA:
“Wells, aqui é nave de carga Vesta RX 7792. Essa não era minha janela de lançamento? Tem mais alguém lá?”
Há uma pausa. Enquanto a esfera, lentamente, cobria toda a lua, tomava mais e mais substância, como que solidificando, feita de alguma massa escura como o vácuo, que vai tomando a forma e o peso de aço em lâminas enegrecidas e semidestruídas. Pode-se perceber que a imensa esfera deixa um rastro de pequenos objetos, pedaços de sua couraça que parece se desfazer lentamente. Então os diálogos de rádio recomeçam:
ESTAÇÃO DE ÓRBITA INTERMEDIÁRIA TSIEN:
“Aqui é a estação Tsien RY 33, falando. O que vocês tem aí, em 0-7-0, Wells? Nossos detectores gravimétricos apontam uma grande massa vindo em direção à rota de Camberra. É um meteoro?”
NAVE DE TRANSPORTE TERRA-MARTE ABRAHAM LINCON:
“Até daqui podemos ver a coisa! Somos a Lincon RX 3459 e estamos a 0-2-3, e podemos ver a esfera daqui. De quem é? Não é americana.”
CARGUEIRO LANÇADOR MAGNÉTICO VESTA:
“Wells, da Vesta de novo. Suspendam os lançamentos. Tirem todo mundo daí.”
ESTAÇÃO DE ÓRBITA INTERMEDIÁRIA TSIEN:
“Ela vem direto prá nós! Se resvalar em nós lança a Tsien sobre vocês, Wells, se o choque for direto, explodimos sobre o Amazonas. Tirem essa merda dali! Vai acabar matando muita gente!”
CONTROLE DE VÔO WELLS VILLAGE – LUA:
“Calma, Tsien. Vocês são a prioridade. O pessoal da Busca e Salvamento já foi acionado. Calma! Temos... Cerca de 12 horas para o primeiro impacto. Vai tudo correr bem...”
O ponto de vista se desloca, girando pelo espaço, indo direto contra a luminância radiante do sol. As vozes no rádio, agitadas e nervosas, vão se calando lentamente, como que perdidas na escuridão que ficou para trás.
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"PARTE III
NAS SENDAS ESCURAS: SOB O UMBRAL
6 HORAS E 27 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO "
A INTENSA LUZ SOLAR SE CONVERTE NOS FOGUETES DE DESACELERAÇÃO DE UMA NAVE DA FORÇA DE BUSCA E SALVAMENTO, QUE SE APROXIMA DA ESFERA, QUE AINDA MANTÉM SEU ASPECTO DESGASTADO E SOMBRIO. ELA É UM “PLANETA MORTO”.
A primeira nave destacada pela Força de Busca e Salvamento gira no espaço, e com pequenos jatos de manobra se posiciona exatamente sobre o polo da esfera, ganhando rotação para se equalizar com a rotação dela. Com um pequeno empuxo de seus jatos principais avança, indo acoplar o anel de atracação em sua proa ao disco de contato da esfera. Mais uma vez por rádio, se ouve o piloto da nave recém chegada dizendo:
COM. DARIO REIS – NAVE DE BUSCA E SALVAMENTO ABADDÓN RX4:
“Controle da missão, aqui é a Abaddón RX4, comandante Reis, conseguimos uma atracação perfeita com a esfera, as alterações feitas pelo tenente Mebarak funcionaram com o sistema antigo da esfera. Temos permissão para abordagem?”
CONTROLE DA MISSÃO DE BUSCA E SALVAMENTO:
“Abaddón RX4, estamos usando a antena do Maranhão, se perceberem algum desvio de frequência, não se alarm... A antena sul-africana está em repar... Congratulações pelo voo plano, e em resposta a sua pergunta: permissão concedida. Boa sort... Em cerca de meia hora a segunda nave deve chegar aí, e... Precisar de acesso por uma escotilha, já que... Confirma que a esfera só tem um anel de atracação.”
COM. DARIO REIS – NAVE DE BUSCA E SALVAMENTO ABADDÓN RX4:
“Estamos tendo falhas de rádio, sim. Existe um radiofarol na esfera emitindo um pulso confuso, isso deve estar atrapalhando ainda mais as comunicações. Vamos entrar os dois, e Mebarak acha que a cerca de vinte e cinco metros temos uma escotilha de fácil acesso para o pessoal da segunda nave. Já podem confirmar qual foi a segunda nave destacada para cá?”
CONTROLE DA MISSÃO DE BUSCA E SALVAMENTO:
“Já... RX7... Partiu... Ela... Lua...”
COM. DARIO REIS – NAVE DE BUSCA E SALVAMENTO ABADDÓN RX4:
“A interferência de rádio está aumentando. Vamos abordar imediatamente a esfera e tentar identifica-la e desativar este radiofarol em curto. Daqui a duas horas nós emitiremos um relatório por pulso de maser. Abaddón RX4 desligando.”
A escuridão cinzenta do interior da esfera parece transpirar uma dor antiga e esquecida, mas ainda viva. As imagens são obscuras e difusas, imersas em uma escuridão opressiva, espessa, parece que percorremos um pequeno e lúgubre corredor, ou, para a imaginação tocada pelo medo, parece que descemos pela garganta monstruosa de uma criatura que nos devora. Então, subitamente, um som metálico, um ranger, uma lâmpada tremeluzente e de um verde desgastado pisca duas vezes, e uma fresta de luz, bem no meio do campo de visão, se forma e se expande. À volta dela temos a sensação de que, junto com o negrume, coisas escuras e fugidias se encolhem e correm da luz que entra, podemos ouvir mesmo, quase no limite entre o som e o silêncio, um choramingar, gritos muito distantes talvez, e um esgar horrendo que parece demonstrar todo o terror que aquele lugar escuro oculta. A perspectiva gira. Não estávamos descendo, mas subindo, do interior para o casco polar da esfera. É a escotilha, a porta de acesso do compartimento estanque do anel de atracação, sendo aberta pelos dois homens da Abaddón que estão entrando. Eles usam trajes pressurizados, flutuando mansamente, na ausência de gravidade do eixo da esfera, e têm somente as luzes que carregam para se guiarem no escuro. No rastro do facho de luz, as coisas obscuras se retorcem e se encolhem, fugindo.
COM. DARIO REIS:
“Ramon! Viu aquilo?”
TEN. RAMON MEBARAK:
“O quê? Não, não, desculpe, eu estava prestando atenção ao sensor atmosférico. Tem ar aqui. Está embolorado, mas respirável. O que foi que viu?”
COM. DARIO REIS:
“Esquece. Se tem ar, tem som... Esse lugar parece morto, mas talvez tenha alguém por aqui. Esse poço sem gravidade deve seguir direto até o núcleo da esfera. Será que dá para ouvir alguma coisa?”
TEN. RAMON MEBARAK:
“Vou ligar o receptor de som externo do meu traje...”
COM. DARIO REIS:
“Ramon... O que houve? Está pálido.”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Ouvi umas vozes...”
COM. DARIO REIS:
“Eu não ouço nada. E meu sistema de microfones externos está em ordem. Talvez algum sobrevivente tenha falado rapidamente pelo intercomunicador de bordo, e não percebi.”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Não, não... Algo muito baixo, quase abaixo do nível de audição... Não está ouvindo mesmo? Um murmúrio baixo, como... Como... Uma prece, talvez, um falatório baixo e repetitivo...”
COM. DARIO REIS:
“Prece? Não! Não ouço nada. Sua mistura respiratória está bem?”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Verificando... Estou bem. Não é delírio, há um som sim. Bem, detectamos fontes de energia funcionando aqui. Talvez algum aparelho ainda ligado, ou alguma gravação em um compartimento longe daqui, quem sabe? Mas tem alguém murmurando algo aqui dentro...”
COM. DARIO REIS:
“Talvez teus ouvidos sejam melhores que os meus. Temos menos de quinze minutos para alcançar o equador da esfera e preparar uma escotilha externa para o pessoal da outra nave entrar. Consegue ignorar o som e seguir adiante?”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Mas é claro. Perdi o medo do escuro aos oito anos de idade. E as tais vozes ainda não estão me mandando matar ninguém, comandante.”
Mebarak sorri, e Reis o observa por um momento, e então dá de ombros, com um meio sorriso, e seguem por um corredor lateral. E a escuridão, regozijando-se e correndo, faminta e formada por montes de seres feitos de treva, vai atrás dos dois homens, devorando as réstias de luz que eles deixavam para trás.
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"PARTE IV
NAS SENDAS ESCURAS: O BARQUEIRO.
5 HORAS E 46 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO"
O VAZIO SALPICADO DE ESTRELAS, AO FUNDO O SOL BRILHA POUCO ACIMA DA TERRA, QUE É VISTA DO TAMANHO DE UMA MOEDA. RECUANDO, AS ESTRELAS, O SOL E A TERRA SE DISTORCEM, SUJOS, E PERCEBEMOS O GROSSO VIDRO DE UMA ESCOTILHA, E RECUANDO AINDA MAIS, DOIS HOMENS TRABALHAM NESTA ESCOTILHA, DEITADOS CONTRA ELA.
Os dois homens estavam agora na área do equador da esfera, “deitados” na superfície interna do casco exterior, pois a gravidade artificial no equador da esfera era na realidade força centrífuga, que os obrigava a ficarem em pé contra a face interna da gigantesca bolha de aço. No “chão”, sob eles, jazia a escotilha externa. Eles haviam despressurizado a câmara em que estavam, e Mebarak usava um sistema portátil de computador pouco maior que a palma de sua mão, e fino como uma prancheta, para acessar os sistemas eletrônicos de travamento da escotilha externa. Reis forçava, resmungando um pouco, o sistema circular de travamento. O rádio ainda não funcionava, mas o procedimento de entrada do pessoal da outra nave de busca e salvamento havia sido definido antes da falha total do rádio de longa distância. Eles tinham que abrir aquilo ali para que os outros entrassem.
COM. DARIO REIS:
“Nnnnnn... Ok, está abrindo... Mebarak, e as vozes?”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Ainda estão lá... Mas estão mais indistintas.”
COM. DARIO REIS:
“Devemos estar longe da fonte agora. Ainda bem que isso abriu rápido. Em alguns minutos eles chegam aqui...”
Alguém! Um traje! Um corpo? As luzes internas de um capacete formam sombras nos olhos dela, como se as órbitas fossem profundas e horrendamente vazias. Por um segundo Ramon congela, e Reis tenta se afastar da porta de um salto. Então a pessoa envolta no traje espacial começa a entrar, e estende a mão. Mebarak hesita, mas acaba por tomar a mão da mulher, que se projeta para dentro da esfera. Reis é o primeiro a falar:
COM. DARIO REIS:
“Como fez o trajeto da RX7 até aqui tão rápido?”
DRA. SHARON:
“O caminho foi fácil. Muitas estruturas de apoio. Assustei vocês?”
TEN. RAMON MEBARAK:
“Eu... Creio que sim... Não esperávamos que você viesse tão rápido.”
COM. DARIO REIS:
“Veio sozinha?”
DRA. SHARON:
“Nunca estou só.”
COM. TALES LUCANO:
“Podem me dar um ajuda aqui?”
Outro astronauta entra pela escotilha. Novamente Mebarak estende a mão e ajuda o novo tripulante a ficar de pé na parede interna da esfera metálica. Todos se entreolham por um momento, então Lucano se apresenta:
COM. TALES LUCANO:
“Tales Lucano, se precisarmos destruir a esfera, eu farei isso, sou perito em explosivos.”
COM. DARIO REIS:
“Comandante Dario, estou no comando desta missão.”
DRA. SHARON:
“Sharon. Sou médica.”
TEN. RAMON MEBARAK:
“Eu sou engenheiro de sistemas... Ramon. Vamos andando? Para isso acabar logo... Ei, Dario, as vozes... Pararam...”
COM. TALES LUCANO:
“Vozes?”
COM. DARIO REIS:
“Explico no caminho. Achamos que existe uma fonte de áudio funcionando em algum lugar distante desta esfera. Se o som parou, acho que isso é um bom sinal. Estamos ficando calmos por aqui, Ramon... Bem-vindos... Doutora, comandante... Vamos.”
Sharon olha para Mebarak de forma enigmática, e ele devolve o olhar. Enquanto isso Reis fecha a escotilha externa, indo em direção ao centro da esfera. Lucano lança um olhar para a mulher, e murmura, enquanto mergulham na escuridão interna:
COM. TALES LUCANO:
“Médica...”
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"PARTE V
NAS SENDAS ESCURAS: MORTE COMO COMEÇO.
4 HORAS E 53 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO"
MAIS UMA VEZ OS CORREDORES ESCUROS. AGORA SEM OS TRAJES, DEIXADOS PARA TRÁS PARA QUE ELES GANHASSEM AGILIDADE, OS QUATRO ASTRONAUTAS CAMINHAM SEGUINDO OS FACHOS AZULADOS DE SUAS LANTERNAS. NOVAMENTE A ESCURIDÃO A VOLTA DELES PARECE SE RETORCER, ENQUANTO OS HOMENS E A MULHER ULTRAPASSAM O MAIS RÁPIDO QUE PODEM CORREDORES, PASSADIÇOS, ESCOTILHAS, E UM OUTRO SEM NÚMERO DE ACESSOS NO LABIRINTO INTERNO DA GRANDE ESFERA.
Os três homens seguem a frente. A mulher vem por último. Vez por outra Lucano lança um rápido olhar para ela, pois ele está logo à frente de Sharon. Há muitos minutos todos caminham sem dizer uma palavra, oprimidos pela escuridão, e pelos sons. As vozes que enervaram Mebarak se calaram, mas outros barulhos pareciam aumentar e se diversificar, à medida que mergulhavam mais e mais na esfera. Sons de ranger, como se o metal da esfera estivesse se rasgando lentamente em algum lugar. Às vezes um chicotear denotava que tirantes de aço se rompiam aqui e ali, explodindo em um grito metálico.
COM. DARIO REIS:
“Ramon, acha mesmo que foi uma boa ideia entramos sem os trajes pressurizados?”
TEN. RAMON MEBARAK:
“A estrutura geral da esfera parece bem comprometida, mas não detectei nenhuma rachadura no casco, nem vazamento de pressão interna. Acho que seremos mais rápidos sem os trajes.”
COM. TALES LUCANO:
“Entrar e sair bem rapidamente parece ser o que quer, não é engenheiro?”
Mebarak se vira para Lucano com cara de poucos amigos, mas um violento estalar seco faz com que ele largue a lanterna. Reis se vira para eles (ele era o primeiro da fila), mas Ramon tentava pegar a lanterna, Tales havia desaparecido, e Sharon mantinha o facho de sua lanterna direto para frente, cegando Dario. Por um momento reinou uma confusão de luz e escuridão, e as vozes desencontradas:
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“O que houve? Quem é? O que é isso? Tire a luz da minha cara, doutora!”
DRA. SHARON:
“Lucano. Ele se foi...”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Lance a luz aqui! Preciso achar minha lanterna! Está escuro! Algo o atacou!”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“O que foi isso, Ramon? Explodiu algo? Quem atacou?”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Ali! Um cabo de aço se rompeu!”
DRA. SHARON:
“Achei o comandante Tales.”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Onde? Mostre!”
Mebarak acha sua lanterna, que havia se desligado. Ela a ativa rapidamente, ilumina por um breve momento o cabo de aço recém partido que balança lentamente em um canto, e os fachos de luz convergem para se unir ao de Sharon, e iluminam Tales. O comandante jaz deitado no chão em um canto, não se vê nenhum ferimento, apenas o peito do macacão de Lucano está sujo de graxa em um tira que cruza o peito. A médica se agacha rapidamente, e examina o homem, dizendo por fim, em seu tom monocórdio:
DRA. SHARON:
“Está morto. Ao que tudo indica a pancada do cabo de aço não o cortou, mas provocou alguma concussão, ou parada cardíaca. Vou esclarecer na autópsia.”
Ocorre um minuto de silêncio, quando eles se entreolham.Dario mais uma vez ilumina o cabo de aço, e novamente, ele tem a impressão de ver a escuridão em volta do cone de luz de sua lanterna se contorcer.
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Eu... Deveria ter previsto isso...”
DRA. SHARON:
“Ninguém prevê esse tipo de coisa, Ramon.”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Ela tem razão.”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Vamos levar o corpo para a nave...”
DRA. SHARON:
“Sejamos práticos: temos pouco tempo. Vamos ao centro da esfera, verificar se podemos ativá-la e tirar ela da rota de colisão. Quando voltarmos, levamos o comandante Lucano conosco.”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Seu pragmatismo é impressionante, Sharon.”
DRA. SHARON:
“Ossos do ofício.”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Dario, acho boa ideia terminar logo a missão...”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Ok. Vamos em frente. Tem certeza de que achamos Lucano quando voltarmos?”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Estou mapeando os corredores em meu PAD. Vamos voltar exatamente por onde entramos.”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Vamos seguir em frente. Ramon, as vozes...”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Está ouvindo?! Consegue ouvir?”
DRA. SHARON:
“Ignorem. Vocês precisam ignorar e focalizar na missão.”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Sharon, não está ouvindo?”
DRA. SHARON:
“Não, Ramon. Alucinação auditiva. Ouça, comandante, vocês estão sob forte estresse. Esta é a hora de por em prática o treinamento que tiveram, e se concentrarem na missão. Confiem em mim.”
Há um silêncio constrangido. Então Dario começa a caminhar de novo em direção ao centro da esfera, seguido rapidamente pelos outros. Sharon lança de longe um último raio de luz sobre o corpo de Lucano. O braço do homem, que a médica pousou sobre o próprio colo do morto, começa e escorregar lentamente em direção ao piso, palma para baixo, quase como se ele tentasse se apoiar. Então Sharon parece ficar nervosa, e se volta para os outros, apressando o passo.
DRA. SHARON:
“Depressa. Temos pouco tempo.”
TITLE CARD:
"PARTE VI
NAS SENDAS ESCURAS: O VALE DA MORTE.
3 HORAS E 25 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO"
CAMINHAM NA ESCURIDÃO, AS QUATRO ALMAS, NA SUPERFÍCIE MAIS INTERNA DA ESFERA, ONDE EXISTE UM MUNDO CURVO, UMA PLANÍCIE ESCURA, COBERTA POR UMA PAISAGEM ANTES VERDEJANTE, COMO UM VASTO PARQUE, AGORA CHEIA DE GRAMA TURVA, E ÁRVORES MORTAS E RETORCIDAS VIVENDO AS CUSTAS DA LUZ ESMAECIDA QUE O NÚCLEO DA ESFERA AINDA PROJETA. A ECOSFERA INTERIOR É UM MUNDO MORIBUNDO, EM SEUS ESTERTORES, MERGULHADO EM SEMI ESCURIDÃO.
Bem no centro de tudo, acima dos astronautas, está o núcleo de energia da esfera. A primeira vista encarar aquilo foi chocante, e os homens ainda olhavam para ele com um temor respeitoso. A médica nem sequer olhava para aquilo. O núcleo é uma esfera também, bem no centro absoluto da esfera Bernal, e é de fato uma visão sombria, como que uma grande (cera de vinte metros de diâmetro) bolha de água obscura, turbulenta, dentro da qual explodiam silenciosos relâmpagos azulados. Eram estes relâmpagos que emprestavam o resto de luz àquela paisagem em eterno anoitecer
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Já viu um núcleo de energia assim, Ramon?”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Nunca. Ele está em perfeito equilíbrio no centro de gravidade da Bernal. Parece uma bolha de plasma.”
Enquanto eles olham para cima, e apontam para lá suas lanternas (a luz sobe e refrata de formas estranhas e fantasmagóricas), Sharon gira o facho de sua lanterna à volta deles, uma volta completa, partindo de um afloramento de rocha próximo, passando pelos dois homens, e voltando ao afloramento, mas pouco antes de chegar passam por silhuetas humanoides na distância obscura, quase no limite da luz de sua lanterna. Assustada, ela volta rapidamente a luz, e por um segundo não vê nada, então ao voltar ao afloramento de rocha, vê as coisas odiosas sobre ele! Sedentas, horrendas!
DRA. SHARON: (Vozes Murmurando)
“Deus do céu! Nos proteja!”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“O que foi, Sharon?”
DRA. SHARON:
“Nada! Acho que aquele cubo negro lá na frente é alguma unidade de controle, veja.”
Os homens veem o quadrado negro, à distância. Anima-se de terminar logo com aquilo, e sair depressa daquele mundo morto, se apressando sem mais conversar a seguir naquele rumo. Em mais alguns minutos estão de frente para o cubo, Ramon se senta em uma pedra próxima, e respira fundo várias vezes.
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Ei, Ramon, está bem?”
DRA. SHARON:
“Deixe-me ver você...”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Estou tendo um pequeno ataque de pânico. Mas estou conseguindo me controlar, tudo bem. Acho que meu medo de escuridão não passou... E essas malditas vozes que não calam.”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Preciso que veja se consegue ativar esta unidade de controle.”
DRA. SHARON:
“Precisamos muito de você, Ramon.”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Tudo bem... Deixe-me ver... É um núcleo remoto de computador, quer dizer que em algum lugar lá atrás tem uma sala de controle...”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Não temos tempo de procurar. Dá para operar isso daqui?”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Sim, esta é uma unidade bem antiga, mas tem uma interface local aqui, olhe... Uma conexão padrão StormWire 2.1. Trouxe algumas, mas por azar não tenho uma 2.1 aqui. Tenho que voltar a nave e pegar um adaptador para meu PAD se conectar com isto.”
DRA. SHARON:
“Seus batimentos cardíacos estão acelerados, acho bom não se esforçar demais.”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Ok. Eu vou. Onde estão as ferramentas que precisa?”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Tudo bem, você é mais rápido que eu... Me trás a maleta de interfaces. É pequena, e está numerada com o código INT-32, você a encontrará no armário 2 da engenharia da Abaddón.”
DRA. SHARON:
“Comandante, por favor, seja rápido. Mas não dê ouvidos ao que encontrar pela frente. Essa escuridão está mexendo com nossas percepções, não vá se perder.”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Minha preocupação com a missão é maior que o resto. Perdemos nosso técnico em explosivos, e temos cerca de 3 horas para dar um empurrão nessa esfera para longe da Tsien! Se não conseguirmos, teremos que explodir a RX7 junto com essa esfera.”
TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)
“Concordo, é a única maneira de acabar com isso sem um especialista aqui.”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Programa seu PAD para me mostrar o caminho de volta, e me passe ele. Vou indo, esperem aqui.”
E Dario começa a correr pela planície curva, seguindo o caminho indicado pelo PAD em sua mão. Mebarak, ainda sentado na pedra, e Sharon, silenciosa e vigilante, em pé ao lado dele, ficam olhando o comandante desaparecer e ser engolido pela escuridão coleante.Durante o trajeto, Dario é assombrado por vultos e sussurros, mas prossegue, aparentemente inabalável. Aos poucos ele vai cedendo, e parece ter dificuldades de respirar. A energia de sua lanterna está cada vez mais fraca, e é com ela já quase se apagando, e com a sensação de que a escuridão o está tentando agarrar, que o comandante Dario percorre os corredores.
TITLE CARD:
"PARTE VII
NAS SENDAS ESCURAS: LÁZARO.
2 HORAS E 48 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO"
OS CORREDORES PARECEM NOVAMENTE A GARGANTA ASQUEROSA DE UM MONSTRO, OU TALVEZ O INTERIOR DE UMA IMENSA SERPENTE QUE OS ENGOLIU. A VOLTA, PELAS PAREDES, HORRORES SEM NOME SE LANÇAM SOBRE O ASTRONAUTA, PROTEGIDO POR UMA RÉSTIA DE LUZ.
O comandante Dario se arrasta pelos corredores, se esgueirando entre escuridões pegajosas e coleantes, arfando sem ar, e suando copiosamente, tentando manter-se concentrado em chegar a nave. Ele chegou a sua nave, pegou a maleta que seu engenheiro precisava, e colocou nova bateria na lanterna, mas parece que a própria escuridão estava sugando a energia dela, que se exauria rapidamente. Dario sacode a lanterna e apressa o passo. Mas subitamente o comandante congela. Sua lanterna se paga lentamente diante de seus olhos aterrorizados, e as vozes horrendas aumentam tremendamente, e as criaturas da sombra começam a avançar sobre ele, cuja respiração está cada vez mais acelerada. Súbito, quando ele percebe que a luz vai se apagar, e que os monstros vão devora-lo no esquecimento da noite eterna das entranhas da esfera, ele fecha os olhos, e grita... Mas nada acontece. Ele abre lentamente os olhos, e percebe que está iluminado pelo foco de uma outra lanterna. Alguém veio em seu encontro.
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Ramon?”
COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)
“Comandante! Dario! Dario! Graças a Deus!”
Foi subitamente que Dario viu que quem segurava a lanterna era um homem morto, um homem morto que o agarrava pela manga do traje, e parecia em desespero.
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Porra! Porra! Porra, me solta, me solta, meu Deus! Meu Deus!”
COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)
“Graças a Deus! Eu encontrei você! Estava perdido na escuridão!”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Sai de perto de mim! Me solta! Você ta morto!! Você morreu!”
COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)
“Não! Não! Não! Olhe, eu sou de carne e osso! Toque meu braço, porra! Estou vivo! Estou vivo!”
Tales agarrava a mão de Dario, que ameaçava soca-lo, e fazia o comandante da Abaddón tocar seu braço e seu rosto. Tales estava em frenesi, e Dario quase tendo um colapso nervoso, mas aos poucos o comandante Reis foi se controlando, então agarrou os ombros de Tales, dizendo:
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Eu vi você morrer. Sharon disse que morreu!”
COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)
“Estou vivo! Essa mulher que vocês trouxeram está tentando enganar todo mundo! Estou vivo! Ela nem deve ser médica mesmo...”
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Ei! Calma! Como assim ‘nós trouxemos’? Sharon veio com você!”
COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)
“Merda nenhuma! Essa maluca estava aqui quando cheguei!”
Dario ficou mudo. Por um longo tempo ficou agarrado à lanterna e ao ombro do homem na sua frente, sólido, real. Reis tentou se lembrar da chegada da mulher, e sua expressão foi ficando mais e mais pálida conforme ele lembrava de que achou estranho que a mulher chegasse tão rápido a bordo, pouco depois de a outra nave chegar. Foi rápido demais. Impossível. Ela estava do lado de fora da porta o tempo todo, e quando Tales chegou ela já estava dentro da esfera, por isso ele pensou que ela havia vindo na Abbadón.
COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)
“Merda! Ramon está sozinho com ela, ela pode pegar ele pelas costas, e acabar com a esfera!”
Dario tomou a lanterna de Tales e correu, desesperadamente pelo túnel escuro. Atrás dele Tales tentava o acompanhar, correndo também, e berrando:
COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)
“Não! Vamos embora! Me leve para fora! Me dá essa luz! Ele está morto, teu engenheiro já ta morto! Filha da puta!!! Volta!”
Dario correu o máximo que pode, por todo o caminho de volta, as vezes ouvindo Tales xingando ele atrás de si, as vezes ouvindo gritos de terror do comandante da RX7, mas quando se virava, via o homem vindo correndo atrás de si, e continuava em frente.
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"PARTE VIII
NAS SENDAS ESCURAS: A FERIDA.
1 HORAS E 08 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO"
O NÚCLEO DA ESFERA ARDIA EM UM PULSAR ASSOMBRADO E ENSANGUENTADO, PINTANDO A PLANÍCIE DE TONS SANGRENTOS. ONDE A LUZ SANGRENTA TOCAVA, BOTAVAM SOMBRAS, QUE DEPOIS SE CONVERTIAM EM PESSOAS FERIDAS, CORRENDO, ENCENANDO O MOMENTO DE SUAS MORTES HÁ TEMPOS, QUANDO A ESFERA SE PERDEU PELA PRIMEIRA VEZ.
Foi quando “eles” começaram a agarra-lo. Dario estava percorrendo a planície, quando percebeu que o núcleo de energia acima dele se incandesceu com uma luz mortiça, venosa e fantasmagórica. A planície então estava repleta de pessoas. Havia gente correndo apavorada por toda parte, e alguns muito feridos e descarnados. Havia fogo, havia explosões. Mas não havia um único som a não ser um pulsar surdo e assustador que vinha do núcleo de energia lá em cima. Por um momento, Dario divisa o cubo negro, e vê a silhueta de Ramon trabalhando nele. O comandante então perde o senso de direção, e começa a ser contagiado pelo pânico das almas perdidas ali, e começa a gritar, então alguém toca seu ombro, ele se vira, pronto para bater com a lanterna:
COM. DARIO REIS: (Vozes Gritando! Gritando de Horror! De Dor! De Pavor!!)
“Ahhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!”
Mas dedos suaves encostam-se a seus lábios. Sharon, no meio da turba irada de pessoas morrendo, segura o braço de Dario, que hesita em bater nela. Então a médica diz:
SHARON:
“Logo você estará totalmente louco. Mas ainda é um homem prático e sabe que não tem nada a perder... Confie em mim, e feche os olhos, vou te ajudar a não ver essa gente por um momento.”
As pessoas estão sujando Dario com sangue. Ele primeiro faz uma expressão furiosa, e então a escuridão começa a engolfá-lo, e seus olhos vão mudando, de fúria a terror, e sua boca se contorce em um esgar, então ele pisca, e sua expressão é a de um menino morto de medo quando ele vai fechando lentamente e forçosamente os olhos...
DRA. SHARON:
“Abra os olhos... Vamos, abra os olhos...”
Ele abre os olhos, e ouve o mais tenebroso silêncio, e ainda assim fica aliviado por não ouvir mais os que estavam morrendo. Lágrimas escorriam de seus olhos, então ele empurra a mulher para longe de si, e percebe que está ao lado de Ramon, que trabalha no cubo negro. Pouco mais à frente, Tales Lucano está agachado no chão, chorando, balbuciando algo. Não há mais ninguém na planície, apenas o núcleo pulsando, incandescendo em vermelho. Ramon olha para Dario, pega das mãos trêmulas do comandante a maleta, prepara seu PAD, e enquanto aciona a interface, ele diz:
TEN. RAMON MEBARAK:
“Vou desativar isso, comandante. Essa coisa não é um núcleo de energia. É um ferimento, um corte no espaço. Tem que ser cauterizado!”
SHARON:
“O núcleo vai disparar uma rajada de plasma, só que desta vez o engenheiro aqui vai calcular a força do pulso, para fechar a ferida para sempre.”
COM. DARIO REIS:
“Ramon, se essa coisa bater na Tsien, muito vão morrer...”
TEN. RAMON MEBARAK:
“Se o núcleo se abrir totalmente, ele vai atravessar a Tsien, e vai cair na Terra, e toda a superfície do planeta vai ficar igual a esta planície, um gigantesco limbo de gente presa entre duas dimensões, eternamente morrendo.”
SHARON:
“Não há saída, essa ferida purulenta tem que ser fechada aqui.”
com uma raiva indisfarçável no olhar, o comandante Reis fitou Sharon, que ficou impassível diante da ira do homem. Então o primeiro imenso lampejo branco do núcleo iluminou toda a planície por um segundo, e todos sentiram a alma queimar, e gritaram. Dario sentiu-se sendo erguido por alguém, e percebeu ser seu amigo, Ramon, que dizia, em uma voz longínqua, pois parecia que a cada pulso de luz branca, a própria luz abafava o som:
TEN. RAMON MEBARAK:
“Vamos! Vamos embora! Fizemos tudo que pudemos!”
E desataram a correr, todos, correndo como se estivessem sendo seguidos pelo próprio fogo do inferno. Então um tremendo lampejo de luz torna tudo branco.
TITLE CARD:
"PARTE IX
NAS SENDAS ESCURAS: A VERDADE DERRADEIRA..."
A INTENSA LUZ PARECEU PREENCHER E DESINFECCIONAR CADA MEANDRO DA ESFERA, PREENCHENDO E QUEIMANDO A ESCURIDÃO CHEIA DE PESADELOS. AGORA FINALMENTE A LUZ DIMINUÍA, E OS ASTRONAUTAS EM FUGA CHEGAVAM, DESESPERADOS, AO ÚLTIMO COMPARTIMENTO ANTES DA SALA DA ESCOTILHA QUE LEVAVA PARA FORA DA ESFERA.
Eles precisavam passar daquela porta, precisavam entrar ali, vestir seus trajes, e sair. Nem tentaram chegar ao anel de atracação, ele estava longe. Sairiam o mais rápido possível daquela esfera, e tentariam chegar a nave por fora. Até ficar a deriva no espaço era melhor que morrer ali. Mas de algum modo a última porta antes dos trajes e da liberdade, estava lacrada, e de longe, de trás deles, um terrível rumor, e um ranger terrível de metal, os impelia a fugir antes que tudo fosse destruído, ainda assim, não conseguiam abrir a penúltima escotilha antes do espaço e da liberdade.
COM. DARIO REIS:
“Eu não fechei essa merda assim! Isso parece que foi soldado!”
SHARON:
“Calma, há uma outra saída, e eu vou mostrá-la a vocês.”
TEN. RAMON MEBARAK:
“Meu Deus! Olha a escotilha lá embaixo! Onde foram parar as estrelas?!”
COM. TALES LUCANO:
“Não! Eu não vou morrer aqui! Eu não vou morrer aqui!”
SHARON:
“Não precisa mais se preocupar com isso. Assim que ficarem calmos, vão entender.”
COM. DARIO REIS:
“Cala essa maldita boca, e ajuda a abrir essa escotilha!”
SHARON:
“Ela não pode mais ser aberta, Dario. Ela não dá para lugar algum. Vou mostra a saída...”
TITLE CARD:
"PARTE X
NAS SENDAS ESCURAS: DEIXAI AQUI, Ó VOZ QUE ENTRAIS..."
A INTENSA LUZ DO NÚCLEO JÁ SE APAGA, E A PLANÍCIE A VOLTA DO NÚCLEO DE CONTROLE COMEÇA A VOLTAR A ESCURIDÃO, QUE A ENGOLIA, COMO SE ELA, A PLANÍCIE, E TUDO MAIS, JAMAIS TIVESSEM EXISTIDO.
Enquanto as últimas réstias de luz se esgotam, percebemos que tudo parece estar envolto em uma luz mais suave, como a luz do luar, e que a planície não está de todo deserta, existem três homens ali, estendidos no chão, pegos pelas costas pela tremenda rajada de plasma do núcleo, os homens jazem, mortos, Dario, Ramon, e Tales. Mas ainda assim, nossa visão deste mundo moribundo passeia pelos corredores, perfazendo o caminho agora de fuga, e passa pelas almas dos homens mortos, que tentam, desesperadamente e em vão, abrir uma escotilha que jamais os deixará sair. Atravessamos a porta de aço, e vemos os rostos desesperados das almas que estão sendo levadas da vida no visor da escotilha trancada. Tudo está ficando escuro, enquanto passamos pelas silhuetas dos trajes espaciais. Então mergulhamos em direção ao chão, e atravessamos a última escotilha, enquanto os rostos na janelinha lá atrás se perdem na escuridão, e estamos fora da esfera, e nos distanciando dela, longe, cada vez mais longe.
CONTROLE DA MISSÃO DE BUSCA E SALVAMENTO:
“Abaddón RX4, ainda não recebemos seus relatórios. Estamos detectando uma perda considerável de massa da esfera... O que está acontecendo por aí?”
Lentamente a esfera mergulha de novo no esquecimento, levando consigo os homens que foram escolhidos por alguém do outro lado para fechar este caminho entre os mundos. Lentamente a esfera vai se desmaterializando.
CONTROLE DA MISSÃO DE BUSCA E SALVAMENTO:
“Abaddón RX4! Onde vocês estão? Não temos contato de radar! Nós perdemos eles...”
FIM
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Aqueron (Roteiro de Telefilme) de Wagner RMS está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Podem estar disponíveis autorizações adicionais às concedidas no âmbito desta licença em contato.c7i@gmail.com.